segunda-feira, 4 de julho de 2011

China se apega à riqueza


03 de julho de 2011 | 0h 00
Mario Vargas Llosa - O Estado de S.Paulo
Volto à China depois de cerca de 15 anos e constato que parece outro país. Embora tenha ouvido e lido todos os ditirambos a respeito do seu formidável desenvolvimento econômico, a realidade vai muito além. Em Xangai, o distrito de Pudong, há 20 anos uma planície coberta por arrozais, é uma Wall Street quatro vezes maior e com o dobro ou o triplo de arranha-céus. Tanto lá como em Pequim, a transformação urbana é portentosa: pontes, avenidas, túneis, edifícios, lojas, galerias, parques exibem modernidade e prosperidade, um efervescente dinamismo 24 horas ao dia.
Uma riqueza ostensiva, sem complexos, pavoneia-se nos shopping centers e nos hotéis luxuosíssimos, nas gigantescas vitrines que exibem roupas femininas, masculinas, bolsas, joias, relógios, calçados, automóveis, fantasias e loucuras das marcas mais afamadas do mundo.
Há restaurantes por toda parte e todos estão lotados de gente em geral bem vestida e amável, que conversa e come sem largar o celular, espiando de vez em quando ao seu redor, por cima de óculos marca Ray Ban, Ferragamo, Gucci ou Lanvin.
Parece que, desde que Deng Xiaoping lançou o lema "Enriquecer é glorioso!", 1,4 bilhão de chineses começaram a produzir e a ganhar dinheiro de maneira frenética. Será que esse é mesmo um país marxista-leninista?
Seguramente é, mais do que nunca, segundo o Partido Comunista, que comemora seu 90.º aniversário de maneira colossal, com homenagens incessantes a Mao Tsé-tung. E, embora com suas delirantes políticas o líder tenha mergulhado a China em miséria atroz e sacrificado milhões de pobres, o país vive agora uma etapa de abundância graças às reformas e à política "socialista" de mercado que a transformaram na segunda potência depois dos EUA.
Num futuro próximo, a China desembocará na sociedade perfeita, onde reinará a justiça distributiva e todos receberão o que pedem, segundo as próprias necessidades, e então a utopia coletivista igualitária se tornará realidade.
Por enquanto, a sociedade chinesa é a mais desigual do mundo, porque as diferenças entre os que têm mais e os que têm menos superam as de qualquer outro país, embora, provavelmente, a China seja o único em que, por decisão do próprio Comitê Central, o Partido Comunista aceita agora entre sua militância até bilionários.
Se vocês detectarem contradições e mistérios ideológicos, leiam o interessante livro de Eugenio Bregolat, La segunda revolución china, no qual o experiente diplomata espanhol e profundo conhecedor do país, onde viveu muitos anos, explica com fartura de detalhes e divertidos episódios, a extraordinária conversão econômica da China realizada em meio a tropeços, intrigas, retrocessos e tanto derrotas quanto vitórias, por Deng Xiaoping.
Esse antigo companheiro e adversário de Mao, sintetizando seu objetivo com outra de suas famosas frases - "Tanto faz o gato ser branco ou preto, o que importa é que pegue os ratos" - foi quem transformou a paupérrima ditadura totalitária, coletivista e estatista erigida por Mao na sociedade capitalista autoritária que tirou da miséria 800 milhões de camponeses e desencadeou crescimento e desenvolvimento vertiginosos, sem precedentes na história.
Bregolat explica que essa insólita variante do socialismo concebida por Deng e seus seguidores, agora no poder, seria incompreensível se não estivesse relacionada à tradição cultural e filosófica chinesa do confucionismo e aos 4 mil anos de história de um país invadido, ocupado e humilhado pelo Ocidente e, finalmente, resgatado pela prosperidade e pela modernização atuais, recuperando o orgulho de si mesmo.
A ideologia socialista é agora uma retórica usada para justificar o monopólio do poder político pelo Partido Comunista. A ideologia real que lançou profundas raízes no país é o nacionalismo. Bregolat está otimista e acredita que o notável progresso econômico levará, mais cedo ou mais tarde, à abertura política, porque as novas classes médias e profissionais, que crescem a cada dia, educam seus filhos no exterior e mantêm um intenso intercâmbio com o mundo mediante as novas tecnologias, exigem cada vez mais a democratização, que se completará de maneira pacífica.
Espero que ele tenha razão e quem não compartilhe totalmente de seu otimismo, como eu, esteja equivocado. Meu pessimismo deve-se ao fato de que, além do nacionalismo, o que aparentemente se tornou uma segunda natureza para boa parte da sociedade chinesa é um materialismo consumista, em que a concentração obsessiva da ação humana na criação de riquezas embota a vida espiritual e intelectual e empobrece o idealismo, a solidariedade e a generosidade.
Embora, por razões óbvias, nas minhas conversas com intelectuais, acadêmicos e escritores chineses, eu tenha sido prudente, me abstendo de perguntas impertinentes, ouvi de muitos deles queixas sobre pouco ou nenhum interesse que os jovens demonstram - principalmente os de melhor formação - pela vida cívica, a cultura e, em geral, por tudo o que seja desinteressado e espiritual, como filosofia, arte ou religião. Todos parecem obcecados por uma boa formação técnica e profissional que lhes abra as portas das grandes transnacionais e seus salários fabulosos ou para postos administrativos no país, agora magnificamente remunerados.
Outra das célebres frases de Deng foi: "Se abrirmos a janela junto ao ar fresco, entrarão as moscas." Imagino que ele a tenha pronunciado na primavera de 1989, pouco antes de dar a ordem para o Exército pôr fim às manifestações dos estudantes na Praça da Paz Celestial, provocando a morte de algumas centenas de jovens. A frase resume a filosofia adotada pelo regime. Sim à abertura econômica e social, mas desde que não se questione o controle absoluto exercido sobre a vida política pelo Partido Comunista.
Os que o aceitam podem ter uma margem bastante ampla de liberdade pessoal, viajar para o exterior, usar a internet. E, se forem escritores ou professores, podem conseguir publicações "capitalistas", desde que elas não critiquem a política chinesa. No entanto, não há tolerância pela dissidência. Liu Xiaobo, Ai Weiwei e outros são assediados, vigiados e, quando suas ações têm repercussão no exterior, presos, julgados e sentenciados a penas variáveis.
Ao contrário do que já ocorreu, há poucos fuzilamentos e, geralmente, eles ocorrem por crimes econômicos. Agora, a dissidência leva à prisão, não ao paredão, e, às vezes, somente ao cárcere domiciliar.
A censura moral existe sempre, porém, é mais branda, e, em bancas de jornal, ruas e livrarias, às vezes, é possível descobrir publicações eróticas. Perguntei ao meu editor e a meus tradutores se meus livros foram censurados. Enfaticamente, me asseguraram que não.
O desenvolvimento chinês seria possível com liberdade? Bregolat duvida. Eu quero crer que sim. Por que motivo na China não poderia ocorrer o que já ocorreu nos EUA, na Grã-Bretanha, na França, e agora na Índia, no Brasil e em tantas outras democracias? / TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA

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