Sorrateiramente, o Senado deu um empurrão em mudar nossa remexida Constituição Federal. Uma silenciosa reforma previdenciária ganha forma. Mas não é qualquer reforma. Esta consegue ao mesmo tempo ser ruim para o segurado e o Instituto Nacional do Seguro Social. Desfalcará os cofres do INSS e deixará descontentes (e empobrecidos) aposentados em todo o Brasil, especificamente no âmbito dos municípios e dos estados.
A Proposta de Emenda à Constituição n. 66, de 2023, de autoria do senador Jader Barbalho (MDB-PA), iniciou no Congresso Nacional com um fim específico e logo depois foi completamente metamorfoseada. Ampliar objetivos normativos durante a tramitação legislativa é uma sutil e velha estratégia política de aprovar assuntos indigestos sem tanto alarde. Na Previdência não é diferente; é comum.
A pretensão inicial da PEC 66/2023 já não era boa. E conseguiram torná-la pior. É um duro ataque aos cofres do INSS, em prol da "sustentabilidade financeira" dos municípios, aderentes ao Regime Geral de Previdência Social, que historicamente não repassam sua contribuição previdenciária. Deve-se pensar no Congresso Nacional que a sustentabilidade do INSS vai de vento em popa, a ponte de arrefecer sua arrecadação.
Dos 5.568 municípios no Brasil, 61% escolheram o regime geral do INSS para gerir a aposentadoria dos servidores municipais, justamente em razão destes terem receio de que os prefeitos não fossem confiáveis no trato dos recursos financeiros do regime próprio. Mas isso não impediu que os prefeitos dos 3.442 municípios, que escolheram o regime geral, devam em 2022 cerca de R$ 79,6 bilhões em dívidas previdenciárias.
Tais prefeitos —inadimplentes— se mobilizaram politicamente para alterar as regras do jogo. Não na lei. Mas diretamente na Constituição, já que a dívida previdenciária atrapalha, entre outras coisas, o repasse federal do Fundo de Participação dos Municípios.
Insatisfeitos por estarem devendo ao INSS, o conteúdo da PEC 66/2023 utiliza desde a criatividade até o plágio de ideia para rolar a dívida.
Copiaram a ideia do ex-ministro Paulo Guedes, da gestão Bolsonaro, de criar um teto para pagar precatório federal, embora extinto pelo STF. A proposta condiciona que o pagamento de precatórios devidos pelos municípios fiquem limitados a 1% da receita líquida. Esse teto viabiliza que os credores de precatórios municipais tenham a dívida adiada indefinidamente. Ou melhor, por 20 anos. No final deste prazo, se ainda tiver resíduo, o prefeito escolhe se paga à vista ou parcela por mais 5 anos.
Para não pagar tantos juros pela dilação de 25 anos, outra ideia é substituir os juros da parcela, trocando a Taxa Selic toda vez que o da poupança for menor. Ou seja, quase sempre. A projeção da Selic anual de 2024 é 10,50%, enquanto a poupança é 6,17% ao ano. Só nesta amostragem uma economia de cerca de 40% dos juros.
A cada cinco anos, verificando-se inadimplência dos municípios no pagamento de precatórios, deverá ser promovido novo parcelamento especial, espécie de parcelamento sem fim.
Além de esticar o prazo dos precatórios, a PEC 66/2023 procura mexer no parcelamento das contribuições previdenciárias e demais débitos dos municípios para ganhar o prazo de 20 anos, mas caso a medida seja ratificada por lei municipal, o que não é difícil. Isso inclui a contribuição previdenciária devida pelos municípios ao INSS, ainda que esteja sendo cobrada na Justiça.
Bastou alguns dias de tramitação bicameral no Congresso que a proposta virou um Frankenstein, um monstro daqueles que mete medo até em marmanjos, especialmente os que vão se aposentar nos estados e nos municípios.
Parte da PEC Paralela, adormecida e desgarrada depois que a Reforma da Previdência aplicada aos servidores federais e celetistas ganhou vida em 2019, foi ressuscitada no corpo da PEC 66/2023. As mudanças inéditas, e também as esquecidas, se encontram num novo capítulo de encolhimento dos direitos sociais. O minimalismo do Estado Mínimo se agigantando sobre a proteção social.
No eixo do pacote de mudanças da PEC, um substituto obriga que automaticamente os regimes previdenciários dos servidores públicos estaduais, municipais e do Distrito Federal se harmonizem às regras estabelecidas para os servidores da União pela Emenda Constitucional 103/2019. Esta, a intenção da PEC Paralela.
Sem um estudo sério dos impactos econômicos e atuariais, nossos políticos vão remodelando ao seu bel-prazer o sistema previdenciário de milhares de pessoas dos 27 estados, Distrito Federal e 5.568 municípios.
A silenciosa reforma previdenciária prevê uma listinha de mudanças: aumento da idade para aposentadoria para mulheres de 55 para 62 anos, e para homens de 60 para 65 anos; pedágio de 100% de tempo de serviço para se aposentar; aumento do cálculo da média de 80% para 100% da média das contribuições, reduzindo os valores dos benefícios para quem ingressou no serviço público após dezembro de 2003; redução dos valores das pensões e aumento obrigatório dos valores das contribuições previdenciárias.
A PEC 66/2023 foi aprovada em dois turnos no Senado e vai para análise na Câmara dos Deputados. Após a promulgação, os municípios terão 1,5 ano para se adequarem às novas regras. Sem muito debate com a sociedade, discretamente vai saindo nova e grande reforma previdenciária.
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