Em agosto de 2010, o Congresso Nacional aprovou o que é considerada uma das leis mais modernas do mundo sobre gestão de resíduos. Foram duas décadas de elaboração até que a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) entrasse em vigor, trazendo planos e metas para estimular o reaproveitamento de materiais e a destinação correta de lixo.
Mas, quase 14 anos depois, a reciclagem passa por uma crise inédita. Membros do setor dizem que nunca viram tantos problemas se acumularem, numa espiral que inclui baixa valorização do material reciclado, insegurança tributária e falta de linhas de crédito.
Sem incentivos, os diferentes elos da cadeia passam a ter problemas para manter o negócio de pé, o que se reflete em pilhas de resíduos sobrando, empresas se desfazendo de patrimônio e, no fim das contas, menos produtos sendo reaproveitados pela indústria.
Um dos setores mais afetados pela crise é o de papel e papelão. Nos últimos anos, o preço da tonelada do material reciclado despencou, diminuindo a atratividade para os catadores.
"Se pegar 200 quilos de papelão na rua, carregar no carrinho esse peso todo, vai ganhar R$ 20 reais por dia. É muito pouco, é insalubre", afirma João Paulo Sanfins, vice-presidente da Associação de Aparistas de Papel (Anap). Na cadeia de reciclagem, o aparista é quem compra as aparas de papel para consolidar grandes volumes e vender para a indústria.
Sanfins, que também é dono de uma empresa de reciclagem em Belo Horizonte, conta que o quilo do papelão chegou ao ápice de R$ 2 na pandemia devido à falta de disponibilidade no mercado. Para aumentar a oferta, alguns fabricantes de embalagens passaram a importar o material, o que provocou queda nos preços.
O problema é que, de 2022 para cá, os valores só caíram, enquanto os custos operacionais (diesel para os caminhões e energia, por exemplo) continuaram subindo. Hoje, o papelão coletado está sendo vendido para a indústria a R$ 0,60 o quilo, o que não é suficiente para bancar a operação. Segundo ele, a situação é "desesperadora".
"Estamos com prejuízo, tendo que nos desfazer de patrimônio para manter a empresa. Isso é um cenário que todo o setor está vivendo", diz Sanfins, que movimenta hoje um volume 30% menor de resíduos do que o normal.
Segundo a Anap, não é raro ver hoje caçambas cheias de papelão ignoradas por catadores por causa da baixa demanda e do preço pouco atraente. Também não são poucos os casos de pequenos empresários do ramo (donos de ferros-velhos, por exemplo) que abandonaram a atividade para trabalhar como motorista de aplicativo.
Sanfins acrescenta que, para piorar, o valor da celulose —que é a matéria-prima virgem— caiu muito no mercado. Isso porque, de uns anos para cá, fabricantes de embalagens passaram a investir em suas próprias fazendas de eucaliptos e pinos.
Como o setor é concentrado em poucas empresas, qualquer diminuição na compra de papel e papelão tem efeito sistêmico na cadeia de reciclagem.
"Um quilo de celulose que uma empresa põe no mercado equivale a dois quilos de material, porque ela deixou de reciclar um quilo [de papel e papelão] e está colocando outro de matéria-prima virgem no mercado."
O cenário vivido pelos aparistas de papel é mais delicado, mas não muito diferente do que acontece com a reciclagem de outros materiais. No fim das contas, membros do setor resumem a crise da seguinte forma: falta de valorização.
Rafael de Barros é diretor da Guarulhos Comércio de Sucatas, uma empresa que compra metais ferrosos, faz o processamento e vende para indústrias reciclarem.
Ele também aponta a verticalização —quando as companhias começam a produzir por conta própria a maior parte dos insumos de que precisam— como motivo para a perda de competitividade do reciclado. No entanto, evita criticar essa postura.
"Elas estão olhando o que é economicamente mais viável. O mundo é assim", diz.
Na avaliação de Barros, que trabalha há 20 anos no setor, a reciclagem só avança à medida que os resíduos ganham atratividade econômica, algo que ainda não acontece.
Em uma das unidades de sua empresa, que fica em Itaquaquecetuba, na região metropolitana de São Paulo, o fluxo de entrada e saída de caminhões com resíduos é incessante. O pátio, ele diz, já esteve mais cheio, mas ainda segue movimentado. Isso porque a sucata ferrosa é um dos materiais mais reciclados do mundo.
Barros faz as contas. Sua empresa tem 200 funcionários, 80 caminhões e cerca de R$ 100 milhões investidos em equipamentos. Só o shredder, uma máquina para triturar metais, custou cerca de R$ 40 milhões.
Mesmo com todos esses custos, o empresário diz não ter acesso a nenhuma linha de crédito diferenciada. Assim como os demais atores da cadeia, precisa arcar com todo o investimento usando as baixas margens de lucro, algo que causa indignação num setor visto como fundamental para a preservação do meio ambiente.
Segundo ele, o Brasil só vai parar de ver plástico, papel e outros resíduos indo parar nas ruas e na natureza quando esses materiais tiverem valor de venda competitivo.
Para garantir que isso aconteça, afirma, é fundamental desenvolver estímulos financeiros e tributários.
Hoje, o setor de reciclagem não paga PIS/Cofins na venda de materiais para a indústria. Na comercialização dentro de um mesmo estado, o ICMS também é diferido. Mas o receio é que essa situação mude.
Em 2021, o STF (Supremo Tribunal Federal) julgou que a isenção dos tributos na venda de reciclados era inconstitucional. Entidades do setor entraram com embargos de declaração e, atualmente, o tema está parado após pedido de vistas do ministro André Mendonça. O placar, porém, está 2 a 1 para que PIS/Cofins sejam cobrados.
Clineu Nunes, presidente do Inesfa (Instituto Nacional da Reciclagem), afirma que a situação do setor hoje é alarmante. "O acúmulo de problemas é uma coisa inédita", diz.
A questão tributária é a que mais preocupa. Segundo ele, se as empresas tiverem de pagar os impostos, seria o fim da reciclagem no Brasil.
Para não ficar nas mãos de uma decisão do STF, o setor apoia o projeto de lei 4035, que garante a isenção e ainda autoriza a indústria a aproveitar crédito tributário ao adquirir material reciclado —o que aumentaria a competitividade frente à matéria-prima virgem.
Mas uma vitória no Congresso não seria suficiente para tranquilizar as empresas de reciclagem. Isso porque a reforma tributária reduz os benefícios que existem hoje.
Rodrigo Petry, especialista em direito tributário do escritório Almeida Advogados, diz que atualmente há total isenção na cadeia. Quando o novo sistema começar a valer, haverá apenas na compra de material vendido por catador pessoa física ou cooperativa.
"No pós-reforma tributária, muito provavelmente, a atual vantagem competitiva deixa de existir. Houve, sim, a instituição de um benefício específico para o setor de reciclagem, mas muito tímido em relação ao que se tem hoje."
Questionado sobre a crise do setor, o Ministério do Meio Ambiente citou, em nota, ações do governo federal para estimular a reciclagem, como a definição de limites para importação de resíduos de papel, papelão, plástico e vidro, além de medidas para fortalecer a logística reversa.
"Há ainda esforços para aumentar a reciclagem no Brasil e tornar obrigatórios, a partir de leis e decretos, acordos voluntários de logística reversa atualmente em vigor", diz a nota.
A pasta afirma que está preparando decretos para estabelecer metas progressivas para o aumento do percentual de embalagens retornáveis no mercado nacional, metas de conteúdo reciclado obrigatório incorporado às embalagens de plástico e a definição de responsabilidades de cada elo da cadeia de logística reversa.
Segundo Nunes, do Inesfa, o cenário atual mostra como é possível o setor viver uma crise mesmo 14 anos após a aprovação de uma política nacional robusta. "Não adianta fazer uma lei e soltar ela. Tem que ter fiscalização, incentivo, ver se é viável ou não."
Nesse cenário, quem costuma sair mais prejudicado são os catadores. Roberto Rocha, presidente da Ancat (Associação Nacional dos Catadores), diz que a desvalorização está afetando "brutalmente" esses trabalhadores, que precisam se virar para conseguir manter o mesmo nível de renda.
"É uma pena, porque esses materiais acabam indo para o aterro sanitário, que não é o que prevemos quando falamos de economia circular", diz. "Nós estamos vivendo uma das grandes crises dos materiais reciclados."
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