Embora eu não possua fontes para uma pesquisa fiel nem dados de qualquer natureza que possam confirmar a minha suspeita, eu creio que o Brasil tenha sido um dos países, sob regime ditatorial, no qual mais se tenha utilizado a música como instrumento de protesto. Com certeza outros usaram e usam esse recuso, mas em nosso país a intensa atividade musical de caráter político foi extraordinária.
Na história da humanidade a arte sempre esteve presente como meio de protesto e de resistência. Quer por meio da poesia ou da prosa, os escritores expuseram as suas ideias libertárias. Ademais, os períodos de abstinência democrática sempre encontraram na música eficiente meio de contrariedade e de apelos pela liberdade.
Durante a ocupação da Polônia o grande Chopin compôs a Polonaise, um dos clássicos mais aclamados e de maior prestígio do mundo. O hino francês, La Marseillaise igualmente foi criada em momento de grande ebulição política, a revolução francesa.
Os dois únicos exemplos citados, mas há inúmeras outras músicas clássicas do mesmo sentido e natureza, trazem uma carga expressiva de patriotismo e de louvar a nação. Mantinha um cunho de protesto e de exaltação patriótica em seus acordes e letras.
Voltando ao Brasil, devemos lembrar que os alvos dos protestos são de duas naturezas. De um lado temos aqueles de cunho social, onde surge com clareza o inconformismo e mesmo a revolta em face da crônica desigualdade social em nosso país. De outro os de conteúdo político.
Diferentemente dos primeiros, as músicas com apelos libertários não podiam explicitar os sentimentos de revolta e a ânsia pelo retorno democrático. As razões eram óbvias. Imperava a censura a tolher a criatividade. As mensagens políticas eram postas com grande cuidado e sutileza.
Logo após a eclosão do golpe militar de 1964 os compositores de maior envergadura intelectual se dedicaram a transmitir suas opiniões, suas críticas, apreensões e esperanças, por meio de letras muito bem elaboradas, que continham metáforas, figuras de linguagem, sutis comparações, recursos que muitas vezes alcançavam os seus objetivos: não eram captados pelos censores e a mensagem contida atingia o corpo social.
Considero a composição de Chico Buarque e de Gilberto Gil, “Cálice”, como a mais significativa, inteligente e, ao mesmo tempo, poética música de protesto que contêm o mais significativo brado conta a ditadura milita.
O seu título, por si só, representa uma inteligente criação semântica por meio de uma expressão, que na fonética é idêntica a outra, tendo elas significados absolutamente diversos. “Cálice”, título da música, é o copo, a taça, o recipiente para se ingerir líquidos. No entanto, a sua pronúncia induz o significado de calar, silenciar, estar proibido de falar, de externar o pensamento. O “Cálice” se transforma em “Cale-se” . Uma autoritária voz de comando tão própria em períodos despóticos.
A genial criação dos dois geniais compositores inspirou-se no sofrimento de Cristo crucificado. Queriam eles o afastamento do cálice “de vinho tinto de sangue”. No entanto, alertaram que apesar do cálice, lido aqui como cala-se, e “mesmo calada a boca, resta o peito. Silêncio na cidade não se escuta”.
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