quinta-feira, 27 de junho de 2024

“A VIDA COMO ELA É”: O CÓDIGO DA FRAUDE EM MENSAGENS DE EXECUTIVOS DA AMERICANAS, piauí


Allan de Abreu|27 jun 2024_15h55

Os primeiros dias de fevereiro de 2017 foram agitados na sede da Americanas S.A., na rua Sacadura Cabral, Centro do Rio de Janeiro. O balanço fechado pela empresa no ano anterior estava sendo esquadrinhado pela KPMG, uma das mais respeitadas firmas de auditoria do mundo. Preocupados, os diretores da gigante varejista criaram um grupo de WhatsApp chamado “auditoria 2016”. Ali, trocavam informações entre si e, principalmente, discutiam métodos para esconder dos auditores as inúmeras fraudes contábeis que a Americanas vinha cometendo havia pelo menos quinze anos e que, num efeito bola de neve, formaram um rombo de 48 bilhões de reais que quebrou a empresa. O escândalo, tornado público em janeiro de 2023, foi a maior fraude da história das corporações brasileiras.

“Pilotem aí a melhor forma de fazer”, escreveu Fábio Abrate, então diretor financeiro da Americanas, numa mensagem enviada no dia 1º. “Não pode dar ruído agora no final.”

O desafio era maquiar as fraudes do chamado “risco sacado”, um tipo de transação comum entre bancos e varejistas. Funciona da seguinte maneira: a empresa de varejo compra um produto do seu fornecedor, mas, para não se descapitalizar, transfere a dívida para um banco. O banco, então, paga o fornecedor à vista, mas com um pequeno desconto. A varejista passa a dever para o banco. A dívida vai acumulando juros, mas ainda assim a operação vale a pena para as empresas, já que os bancos permitem estender os prazos de pagamento – algo que não seria possível com o fornecedor. Feita essa transação, a varejista tem o dever de informar, em seu balanço financeiro, a dívida bancária. Era isso que os gestores da Americanas não faziam. Na prática, eles fingiam que não havia dívida.

Esconder o esquema, contudo, não era fácil. Como a KPMG também recebia informações dos bancos, a Americanas precisava alinhar a fraude com cada um dos bancos com os quais tinha dívidas. “Será que Itaú* vem hoje? KPMG está levantando diversos pequenos pontos. E não param de alterar folha de ajustes, pedir explicações e documentos”, escreveu no grupo Rodrigo Martins, outro diretor. “Realmente tá desesperador. Precisamos encerrar”, respondeu Flávia Carneiro, então superintendente de controladoria da rede varejista.

“Estou aqui na blindada”, disse, a certa altura, Murilo Correa, executivo que ocupava o cargo de Chief Financial Officer (CFO) e que, portanto, era o principal responsável por supervisionar as finanças da Americanas. Ele se referia à “sala blindada”, como os diretores apelidaram um espaço reservado na sede da empresa onde eram discutidos “assuntos sensíveis”. Minutos depois, todos os diretores foram até a sala encontrá-lo. 

No dia seguinte, 2 de fevereiro, os diálogos no grupo de WhatsApp ficaram mais agitados. “Bom dia. Falei com Itaú agora novamente. Dois caras precisam aprovar. Um já aprovou e outro não. Nosso gerente vai colocar os dois agora para se falarem. O que aprovou vai precisar convencer o que não aprovou. Quando eu tiver novidades, sinalizo”, escreveu Abrate, o diretor financeiro, complementando em seguida: “Temos que estar muito bem preparados. [] Agora é a hora! Vamos com tudo. Itaú não é Santander. Assunto azedou muito. Podemos ter efeitos colaterais.” Ao ver essa mensagem, um dos diretores chamou Abrate para uma conversa na “sala blindada”. “Miguel está aqui”, afirmou, em uma possível referência a Miguel Sarmiento Gutierrez, presidente da Americanas na época.

Passaram-se seis dias angustiantes. Em 8 de fevereiro, finalmente, Flávia Carneiro brindou o grupo com boas novas: “Parecer [da KPMG] aprovado!”, e enviou o PDF do documento. “Show! Ufa”, respondeu José Timotheo de Barros, então diretor operacional da empresa.

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As conversas de WhatsApp foram obtidas pela Polícia Federal, num inquérito que culminou, nesta quinta-feira (27), numa operação de busca e apreensão contra diretores e outras pessoas ligadas à Americanas. A investigação se baseia na quebra dos sigilos telemáticos dos ex-diretores da empresa e nos acordos de delação premiada assinados em agosto de 2023 com Flávia Carneiro e Marcelo da Silva Nunes, ex-diretor executivo financeiro da Americanas. Eles não só esmiuçaram as fraudes como entregaram à PF vasto material que as comprova e que aponta para o envolvimento dos bancos nessa operação criminosa.

A Justiça determinou a prisão de Miguel Gutierrez e da atual CEO da Americanas, Anna Christina Ramos Saicali, mas nenhum dos dois foi encontrado – Miguel se mudou para a Espanha no ano passado, e Saicali deixou o Brasil rumo a Lisboa no último dia 15 (o bilhete foi adquirido na véspera). Ambos estão na lista de foragidos da Interpol. Os três controladores da empresa, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, não foram alvos da operação.

 

Acúpula da Americanas recorria à fraude porque, ao esconder as enormes dívidas com os bancos, conseguiam ostentar um balanço com lucro, em vez de prejuízo. O relatório financeiro da empresa dava a entender que tudo ia bem: a Americanas era saudável e altamente rentável. A varejista, com isso, viu suas ações valorizarem de forma consistente – e, com isso, mais acionistas investiam na empresa, o que mantinha o caixa cheio. De quebra, pelo bom desempenho, os diretores embolsavam bônus milionários a cada ano.

Um dos e-mails obtidos pela PF é ilustrativo. Em 26 de maio de 2022, o diretor operacional da Americanas, Timotheo de Barros, escreveu para o colega – e mais tarde delator – Marcelo da Silva Nunes: “Segue a visão do resultado na visão ‘a vida como ela é’. Devo circular para todos?”, escreveu. “A vida como ela é”, nas palavras de Barros, era o balanço financeiro real da empresa – aquele que continha as fraudes e que, por isso, só circulava internamente. O documento, encaminhado por ele para Nunes, registrava um prejuízo de 209 milhões de reais no primeiro trimestre de 2021. Enquanto isso, os números divulgados para o mercado eram bem mais auspiciosos: apontavam lucro de 129,4 milhões de reais.

Para operacionalizar a fraude, segundo a investigação da Polícia Federal, os diretores criavam arquivos contábeis paralelos. Uns eram chamados de “verdes”; outros, de “vermelhos”. Os verdes continham os números fictícios, com lucros celebrados pelos acionistas; os vermelhos continham os números reais, quase sempre deficitários.

A diretora Flávia Carneiro resumiu, em seu acordo de delação premiada, como a fraude era operada. Aos investigadores da PF, ela afirmou: “O orçamento [da Americanas] era uma meta a ser atingida, e não refletia a realidade. Essa meta era sempre baseada no ano anterior, que também não era real, e isso passou a virar uma bola de neve. A colaboradora [Carneiro] passou se desesperar porque nitidamente não era possível chegar nesses orçamentos, mas eles queriam sempre garantir esse crescimento constante”.

Além da fraude nas operações de “risco sacado”, os diretores se valiam de outros métodos para enganar o mercado, como o registro fictício de cartas de verba de propaganda cooperada (VPC), em que a varejista promove ações de publicidade dos produtos de seus fornecedores e, em troca, ganha um desconto na compra desses produtos para posterior revenda. A diretoria da Americanas lançava registros de VPC de ações de marketing que nunca foram feitas, e assim reduzia substancialmente as despesas com fornecedores.

“Nas reuniões com a auditoria sempre se fez tudo para esconder essas fraudes dos auditores, e o processo de fechamento de resultado de final de ano era sempre muito traumático porque tinham que ser cometidas várias fraudes para esconder da auditoria”, confessou Marcelo Nunes à Polícia Federal. Segundo os investigadores, havia ainda outras estratégias para fraudar as contas da empresa, como a “manipulação entre linhas de despesas nas notas explicativas das demonstrações financeiras”, a “contabilização de despesas como investimentos” e a omissão do “registro de créditos tributários”.

 

Quando, em agosto de 2022, Sergio Rial foi anunciado como o novo CEO da Americanas no lugar de Gutierrez, os diretores sabiam que era questão de tempo até que as fraudes fossem descobertas pelo mercado e pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão de regulação do governo federal. Por isso, naquele momento, começaram a vender suas ações na empresa: Miguel Gutierrez se desfez de 158,5 milhões de reais em papéis; Anna Saicali, 59,6 milhões; Barros, o diretor da “vida como ela é”, 20,7 milhões; e Abrate, 6,4 milhões. 

“Justamente ao perceberem que a assunção de Sérgio Rial levaria ao desbaratamento da fraude bilionária nas finanças das companhias, os investigados iniciaram um forte processo de venda de ações, a fim de vendê-las por preço acima do que seria avaliado pelo mercado após a divulgação da fraude”, escreveu o delegado da PF André Gustavo Veras de Oliveira nos pedidos de busca feitos à Justiça e que embasaram a operação desta quinta-feira (27). 

No dia 11 de janeiro de 2023 a Americanas divulgou publicamente “inconsistências” contábeis no valor de 20 bilhões de reais. Oito dias mais tarde, a tradicional rede varejista, fundada em 1929, ingressou com um pedido de recuperação judicial devido a um rombo estimado em 48 bilhões de reais, cinco vezes o patrimônio líquido da empresa naquele momento.

Todos os catorze diretores que foram alvos da operação nesta quinta-feira (27) serão indiciados pela Polícia Federal por manipulação de mercado e uso de informação privilegiada, crimes previstos na lei 6.385, de 1976, e também por associação criminosa.

Em nota, a assessoria da Americanas disse apoiar as investigações da Polícia Federal. “A Americanas reitera sua confiança nas autoridades que investigam o caso e reforça que foi vítima de uma fraude de resultados pela sua antiga diretoria, que manipulou dolosamente os controles internos existentes. A Americanas acredita na Justiça e aguarda a conclusão das investigações para responsabilizar judicialmente todos os envolvidos.”

Também por meio de nota, o Itaú, citado nas mensagens obtidas pela PF, negou qualquer participação, direta ou indireta, nas fraudes contábeis da Americanas. “O banco sempre prestou às auditorias e aos reguladores informações corretas e completas sobre as operações contratadas pela empresa, conforme legislação vigente e melhores práticas de mercado. Conforme já esclarecido, os informes enviados às auditorias sempre alertavam para a existência das operações de risco sacado. Os diretores da Americanas envolvidos na operação interagiram com representantes do Itaú no sentido de retirar os alertas. O banco nunca concordou com esse pedido e inclusive interrompeu, por mais de 6 meses, as operações de risco sacado. O Itaú reforça que a elaboração das demonstrações financeiras é de responsabilidade única e exclusiva da administração da empresa e repudia qualquer tentativa de responsabilização de terceiros por falhas ou fraudes nessas demonstrações.”

piaui enviou mensagens para Gutierrez e sua advogada, Ilcelene Bottari, e também para a defesa de Anna Saicali, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem. O Santander também foi procurado, mas não respondeu. Os advogados dos demais investigados não foram localizados. O espaço segue aberto para eventual manifestação.

 


* A família do fundador da piauí é acionista integrante do bloco de controle do Itaú.

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