quinta-feira, 27 de junho de 2024

Maconha: STF acerta diagnóstico, mas se mostra incapaz de oferecer uma solução eficiente, FSP

 

Cristiano Maronna

Advogado, é mestre e doutor em direito penal (USP), diretor da Plataforma Justa e autor de “Lei de Drogas Interpretada na Perspectiva da Liberdade” (Contracorrente, 2022); membro da Rede Reforma e do Repensando a Guerra às Drogas

SÃO PAULO

Após 13 longos anos de tramitação e cerca de nove anos desde o início do julgamento, o Supremo Tribunal Federal formou maioria a favor da declaração de inconstitucionalidade da criminalização da porte de maconha para uso pessoal e da fixação de critérios objetivos para diferenciar uso e tráfico.

O julgamento foi confuso, cada um dos 11 ministros apresentou um voto individual e em muitos pontos divergentes e nem mesmo o placar ficou claro, apesar de ser indiscutível que a maioria do colegiado votou pela descriminalização da posse de até 40 gramas de maconha. Nesta quarta-feira (26), o julgamento deve prosseguir, com a modulação dos efeitos da decisão. Há muitas incertezas no ar.

Grande parte dos ministros reconheceu que usuários negros e periféricos são presos e condenados por tráfico. A disfuncional aplicação da Lei de Drogas é hoje o principal vetor encarcerador no Brasil. No lugar de garantir direitos, o sistema de Justiça (com raras exceções), tornou-se o fiador da barbárie. No decorrer do alongado julgamento, foi possível ouvir votos com extensa autocrítica ao Judiciário em particular.

A imagem mostra uma multidão participando da 'Marcha da Maconha' em Brasília, DF. As pessoas estão segurando um grande banner branco com o texto 'marcha da maconha' em letras verdes e uma folha de maconha estilizada ao lado. O evento ocorre ao ar livre, com o sol brilhando ao fundo e algumas palmeiras visíveis.
Militantes pela descriminalização da maconha participam da Marcha da Maconha, na praça dos Três Poderes, em frente ao Supremo Tribunal Federal, em Brasília - Pedro Ladeira - 30.mai.19/Folhapres

A maioria do Supremo acertou o diagnóstico, mas não foi capaz de oferecer uma solução eficiente para os desafios existentes no campo do processo penal, da segurança pública e da política criminal, em especial a definição de diretrizes orientadoras da atuação das forças de segurança e do próprio Judiciário.

Analisar a constitucionalidade apenas do porte de maconha e não das demais drogas postas na ilegalidade é um exemplo do efeito "backlash" produzido pela PEC 45, que impõe a criminalização de qualquer quantidade de drogas, uma tentativa golpista do Congresso de emparedar o Supremo. Cresceu a demanda por autocontenção da corte, inclusive por parte de alguns de seus membros, uma "virtude passiva" para evitar desgastes na conflituosa relação com o Congresso.

A restrição somente à Cannabis excluiu justamente os mais vulneráveis: pessoas que vivem em situação de rua e têm problemas relacionados ao uso de drogas, como crack, continuarão sendo criminalizadas, presas e submetidas a tratamento forçado. Cada dia, sua agonia, disse o ministro. As nossas agonias continuarão a ser muitas e muito provavelmente a decisão do STF não vai alterar o quadro dramático que existe hoje.

O voto condutor da maioria estipula presunção relativa de uso pessoal no caso de posse ou porte de até 40 gramas de maconha, exceto se presentes outros indícios de traficância, como diversidade de drogas, local, presença de balança, anotações e mensagens eletrônicas e telemáticas.

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Questões essenciais não foram tratadas e restam muitas dúvidas: o testemunho policial e as provas a ele ancoradas continuarão a ser valorados como suficientes para acusar ou condenar por tráfico? Sendo o tráfico de drogas um crime que exige prova da finalidade mercantil, esse ônus pertence com exclusividade à acusação e sua demonstração exige corroboração externa aos agentes da lei envolvidos no caso.

Outro aspecto importante desse debate, até aqui ausente no julgamento, diz respeito às câmeras corporais nas fardas dos policiais, as quais são fundamentais para qualificar provas judiciais e administrativas, tornando possível o controle da legalidade "a posteriori" do agir policial, em especial em questões como justa causa para abordagens policiais, perfilamento racial, a obrigatoriedade do "Miranda Rights" [termo usado nos EUA que dá ao suspeito o direito de permanecer calado e não gerar provas contra si], autorização do morador para buscas domiciliares sem ordem judicial etc.

Não se debateu a imprestabilidade da denúncia anônima, a impossibilidade de concessão de mandado de busca à Polícia Militar ou da prática, pela PM, de qualquer ato privativo de polícia judiciária.

Como o STF vai modular essa decisão? Condenados e processados por tráfico de até 40 gramas de maconha e que estão hoje presos, poderão ser beneficiados?

Se a posse de drogas para uso pessoal é mero ilícito administrativo, então estados, DF e municípios poderão legislar sobre a matéria por possuírem competência concorrente? Há exemplos recentes de leis municipais impondo elevadas multas a pessoas flagradas usando drogas em locais públicos, em regra os mais pobres e vulneráveis.

A descriminalização pela via judicial não implica indevida invasão de competência privativa do legislador, como demonstram exemplos que podem ser colhidos no direito comparado. As supremas cortes de Argentina, Colômbia, México e África do Sul declararam inconstitucional leis criminalizadoras do porte de drogas para uso pessoal. Na Espanha e na Alemanha o Judiciário estipulou critérios objetivos baseados em quantidades de substâncias ilícitas.

Um Judiciário independente é essencial para evitar a ditadura da maioria, em defesa da intangibilidade dos direitos fundamentais. Não é papel do Estado dizer a pessoas adultas e capazes o que pode ou não penetrar os seus corpos.

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