Os anos 1980 foram vividos sob a sombra do HIV. Pensava-se em fazer sexo e na sequência vinha o medo do contágio pela doença. Houve um momento em algumas pessoas achavam que poderiam se contaminar só com um aperto de mão ou com um perdigoto.
Até que surgissem algumas certezas científicas, muita bobagem foi dita e propagada, inclusive pelos meios de comunicação. A mentira mais abjeta que se promoveu é que se tratava de uma doença de homossexuais, o que teve um efeito estigmatizante e serviu para reforçar ainda mais os preconceitos.
Nesse contexto obscuro aconteceu a Operação Tarântula, um dos episódios mais vergonhosos da história brasileira no qual a polícia paulista de forma indiscriminada perseguiu implacavelmente a população trans e de travestis da Grande São Paulo com objetivos moralizantes e higienistas.
Sob o comando do delegado José Wilson Richetti, um preconceituoso empedernido que posava de paladino antiaids, se tentou limpar a cidade de tudo que fosse considerado por ele como "ofensivo à família brasileira" e atentasse contra os "bons costumes".
A perseguição foi deflagrada na infame data de 27 de fevereiro de 1987, já depois da abertura política e do fim da ditadura, e durou até 10 de março do mesmo ano, sujeitando centenas de pessoas a situações humilhantes. O nome tarântula, uma aranha europeia, vinha dos tentáculos da operação que começava na região central, mas se espalhava por todo o município e incluía outros locais, como Osasco, Guarulhos e o ABC Paulista.
Na mesma época outras operações repressivas semelhantes foram colocadas em prática, como a Arrastão, a Limpeza e a Rondão, que tirava mulheres trans e travestis das ruas e as jogavam no camburão para serem fichadas e presas.
Em matéria publicada pela Folha de S.Paulo no dia 1 de março de 1987 com o título "Polícia Civil 'combate' a Aids prendendo travestis", se destaca outro policial no comando à perseguição de minorias, Márcio Cruz, delegado chefe do Departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São Paulo.
Cruz dizia que o objetivo da Operação Tarântula era "espantar a freguesia" das trans e travestis e "assim diminuir a propagação da doença". "Os tempos de Nostradamus estão chegando", afirmava. Ele acreditava também que se vivia naquele momento "um período pré-apocalíptico" e dizia que os alvos da operação poderiam responder aos crimes de ultraje público ao pudor e contágio venéreo.
As narrativas da época reforçam a perversidade dos atos da polícia, tomada por um forte sentimento homofóbico. Mulheres trans e travestis eram jogadas no chão ou colocadas contra a parede, tendo suas genitálias e outras partes de seus corpos golpeadas por cassetetes.
A polícia e, frequentemente, o próprio Richetti, ficava na frente de bares frequentados por esses grupos para reprimi-los e impedi-los de trabalhar e se divertir. Um dos locais prioritários de abordagem das autoridades públicas era o Largo do Arouche, onde a população LGBTQIA+ se reunia desde os anos 1950 com festas, encontros e outros eventos de resistência.
Havia uma vontade ditatorial na ação da polícia que agia contra as minorias da mesma forma que tinha agido durante o regime miliar. Mas os "elementos subversivos" dessa vez eram identificados por sua sexualidade e não mais por suas posições políticas.
O argumento das autoridades estava associado a questões de saúde pública, especificamente ao combate ao HIV. Agir com violência contra mulheres trans e travestis se converteu em uma espécie de política pública para combater o vírus. Essa política contou com o apoio ou mesmo com a indiferença da população, o que só aumentou a selvageria da polícia.
Apesar dos mais de 35 anos passados, o que se vê ainda hoje é uma forte perseguição às trans e às travestis. Em 2023, houve 155 mortes de pessoas trans no Brasil, sendo 145 casos de assassinatos e dez suicídios, cometidos após a pessoa sofrer algum tipo de violência. O número de assassinatos aumentou 10,7%, em relação a 2022, quando houve 131 casos
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