Em artigo publicado nesta Folha no último dia 9 de junho, Celso Amorim, assessor especial da Presidência da República, argumenta que há uma articulação entre Brasil e China oferecendo uma "renovada oportunidade de ação diplomática" para construir o que ele chama de "Eixo da Paz", visando uma solução para a guerra entre Rússia e Ucrânia.
Amorim baseia-se em seu comunicado, divulgado conjuntamente com Wang Yi, ministro das Relações Exteriores da China, publicado no site da Presidência da República em 23/5/2024. Esse comunicado contém "entendimentos comuns" entre Brasil e China para uma solução política ao que eles chamam de "crise na Ucrânia" (termo que leva o leitor a associar a Ucrânia à crise, e não a Rússia, que iniciou a guerra de forma unilateral).
Apesar de indicar que todas as propostas de paz devem ser consideradas, um trecho crucial do artigo de Amorim sugere restrições. Amorim diz que "não podemos nos render a narrativas simplificadas" e que devem ser considerados fatores "históricos e políticos", assim como "legítimas preocupações de segurança de todas as partes".
Amorim não esclarece a natureza de tais narrativas ou quais fatores históricos e políticos ele tem em mente. Mas a sugestão implícita de que a Rússia teria legítimas preocupações de segurança é não apenas absurda mas propagandística. A Federação Russa não invadiu a Ucrânia por preocupações de segurança legítimas e nunca teve suas fronteiras ameaçadas pela Ucrânia ou pela Otan.
Ademais, existe um caminho que poderia levar ao fim da guerra imediatamente, sem necessidade de "preocupações de segurança" do lado da Rússia e sem a destruição do Exército russo (que Amorim parece considerar indesejável): Putin pode trazer seu Exército de volta e desocupar os territórios ucranianos que ocupa ilegalmente, por escolha, desde 2014.
Melhor ainda se ele se comprometesse a parar de invadir e destruir cidades inteiras, como fez na Chechênia, na Síria, na Geórgia e na Ucrânia—sempre com o pretexto de "preocupações de segurança". Putin poderia fazer isso e ter sua máquina de propaganda estatal descrevendo, de alguma forma, a situação como uma vitória.
Haverá protestos por um tempo, como nos dias após a morte de Navalny, mas Putin provavelmente conseguiria viver o resto dos seus dias em luxo, como o maior oligarca russo, podendo até restabelecer oficialmente os laços com países europeus no futuro —especialmente se a extrema direita europeia, próxima de Putin, continuar a crescer.
Talvez Brasil e China pudessem usar sua influência, como parceiros estratégicos da Rússia por meio dos Brics, para tentar convencer Putin de que esse é o melhor caminho para acabar com a guerra. Mas o Kremlin não precisa nem se dar ao trabalho de tentar levar o Ocidente a crer que tal curso não é "viável". O Brasil e a China fazem esse trabalho por ele.
Por um lado, o governo brasileiro usa um discurso moralista, criticando aberta e repetidamente "as atrocidades cometidas pelo governo Netanyahu em Gaza" (como disse o chanceler Mauro Vieira em um de seus artigos recentes), publicando notas frequentes que condenam explicitamente os ataques israelenses, resultando, de fato, no sofrimento e morte de milhares de civis palestinos inocentes.
Por outro lado, notas similares não são publicadas pelo governo brasileiro para condenar os ataques russos na Ucrânia —que explodem pais e filhos passeando nas ruas ou dormindo em suas casas—, ou os sequestros de milhares de crianças ucranianas, ou os casos de tortura e assassinatos de prisioneiros de guerra etc.
Ainda aguardamos linguagem do tipo "as atrocidades cometidas pelo governo Putin na Ucrânia" vindas do governo brasileiro. O "Eixo da Paz", ao contrário do que prega Amorim, facilita a destruição russa na Ucrânia, com o Brasil disparando suas importações de óleo da Rússia e injetando bilhões, que estão sendo utilizados nas compras de microeletrônicos e outras tecnologias chinesas essenciais para a Rússia manter a fabricação de tanques, mísseis e outras armas.
Talvez minha narrativa seja simples demais para Amorim, mas o governo brasileiro é tão hipócrita quanto, ou mais do que, aqueles que critica.
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