Construído em terras indígenas, o Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, foi inaugurado nos anos 1980 e é o mais movimentado da América do Sul. É um estranho àquele local. Os diretores Flora Dias e Juruna Mallon fizeram de toda a região do aeroporto, incluindo os arredores onde moram pessoas, o verdadeiro protagonista de "O Estranho", filme exibido no Festival de Berlim de 2023 que chega nesta quinta-feira ao circuito comercial.
Também é conhecido como Aeroporto de Cumbica, ou seja, de nuvem baixa, ou nevoeiro, em tupi-guarani. Esse estranho, então, desafia a natureza num local que muitas vezes apresenta difícil visibilidade. Além de funcionar em um terrível processo de apagamento das identidades dos povos originários que lá viviam.
Mas o filme, ao contrário do que se pode pensar e do que saiu em algumas divulgações, não é um documentário sobre o aeroporto. Ao menos, não é só isso. Existe a perseguição ao real tão em voga no cinema brasileiro deste século. Mas essa perseguição contamina a ficção, como já vemos acontecer há muitos anos.
E existe também a trapaça, no bom sentido. "Café e Canela", de Glenda Nicácio e Ary Rosa, parecia nos levar para o documentário quando, de repente, se transforma, num corte, em ficção. Aqui, temos uma operação menos ousada, mas um corte também pode nos levar, sem aviso prévio, da ficção ao documentário, ida e volta.
Na verdade, o longa é uma especulação, por vezes multitemporal, com personagens que trabalham no aeroporto ou vivem na região. Um ensaio meio delirante, meio observacional, tendo esse lugar impessoal como catalisador de crises ou emoções improváveis.
No elenco estão tanto nomes mais conhecidos do público de cinema, como Rômulo Braga e Helena Albergaria, como atrizes que figuram entre as novas apostas do cinema brasileiro, como Larissa Siqueira e Patrícia Saravy, além das estreantes, ao menos em longas, Antônia Franco e Laysa Costa.
E o filme também não é bem uma ficção, embora dê vazão ao imaginário e construa dramas a partir dos relatos. Em certa altura, mulheres indígenas são entrevistadas, dando um nó nas pessoas que dependem de uma classificação.
Nem ficção, nem documentário, mas algo entre essas duas instâncias, e com muito das duas. Uma das características do cinema moderno é a de ter implodido essa muralha que separa uma da outra. Usa-se o termo ensaio para dar conta desse tipo de filme, mas o termo também é impreciso.
Podemos dizer que "O Estranho" não cabe confortavelmente nessas classificações, menos por se desviar das convenções que caracterizam a ficção e o documentário, o que não faz, mas, ao contrário, por se apegar bastante a elas.
Num outro momento, estudantes entrevistam a personagem de Larissa Siqueira, Alê, uma das funcionárias do aeroporto. Ela conta do rio da região, agora poluído, que antes era o local onde as crianças nadavam e brincavam.
Conforme Alê tenta responder às perguntas, ela precisa parar porque os aviões decolam, deixando um ruído ensurdecedor por uns dez, 15 segundos. A câmera vira para o lado, procurando mostrar os aviões decolando e a proximidade da pista com o local onde a entrevista é feita.
Esse tipo de movimento revela uma onipresença do estranho, com um barulho absurdo num lugar que antes era mato, águas, vento, nevoeiro, ou seja, a natureza em abundância.
O filme apresenta um risco: não há uma trama propriamente dita, o que faz de sua parte, digamos, ficcional, um exercício meio frágil de dramaturgia. Com isso, o espectador menos paciente pode dispersar, e buscar o celular, seu habitual refúgio para o tédio.
Cansou um pouco esse tipo de busca pelo real dentro desse hibridismo de propósitos. Talvez por consciência disso, os diretores procurem um viés de alguma originalidade dentro desse lugar de transição entre sonhos e portos seguros.
O que encontraram está bem na origem do local. A aposta é toda nesse território indígena. O filme então é político: diz claramente que aquela terra tinha dono. Hoje é espaço de lucro, também para quem come pelas beiradas.
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