O Brasil, sozinho, tem 98% de todas as ações trabalhistas do mundo. Ministros do STF folgam 98% do tempo. Bancos financiam 98% das viagens de ministros do STF ao exterior. Ministros do STF são 98% técnica, 2% família. 98% dos brasileiros apoiam Alexandre de Moraes para a Presidência. 98% dos militares respeitam a lei e não acreditam ter última palavra na interpretação constitucional.
Essas frases falsas dariam boas manchetes na política do pânico e circo. Na democracia com déficit de atenção, a desinformação verossímil se espalha com mais força e facilidade do que a mentira voando abaixo do radar da verossimilhança. Ou talvez o contrário, a depender das inclinações de espírito da rede por onde navega.
Pois uma dessas frases foi dita por Luís Roberto Barroso, presidente do STF, anos atrás. Afirmou que o país tinha 98% das ações trabalhistas do mundo (do mundo) e prejulgou qualquer discordância: "Na vida devemos trabalhar com fatos, não escolhas ideológicas prévias." Sua frase, ironicamente, dizia mais sobre si mesmo do que sobre o mundo. Faltavam fatos, sobraram escolhas prévias. Falhava empiricamente e teoricamente.
Pronunciada numa palestra na Universidade de Oxford, em defesa da reforma trabalhista, cuja constitucionalidade viria a julgar depois, a frase não passou despercebida, nem foi inofensiva.
No relatório do senador Ricardo Ferraço, que defendeu a aprovação do projeto de lei, a frase foi citada como fundamento. O conteúdo da fala ajudava, mas foi ainda mais importante quem a enunciava. Barroso deu ao legislador um conforto constitucional, esse pré-juízo de constitucionalidade sobre a lei. Foi mais um sopro de apoio à reforma.
O episódio emblemático ilustra como ministros do STF têm participado, dentro e fora dos autos, na diluição dos direitos do trabalhador. Muitos foram defensores incondicionais de qualquer mudança sob a alcunha de "reforma trabalhista". Em algumas ações do STF, foram mais longe que a própria reforma e deixaram precarizar o que nem o legislador precarizou. Até elogios não solicitados à reforma foram redigidos nos votos.
Na pesquisa "STF como Justiça Política do Capital", Grijalbo Coutinho descreveu a transição do STF de "tribunal moderado-garantista" (1990 a 2006), que priorizou, por exemplo, o legislado sobre o negociado e bloqueou tentativas de terceirização de atividade-fim, a "tribunal ativista-conservador" (a partir de 2007), que autorizou terceirização generalizada, aceitou formas contratuais precárias e desarticulou fontes de custeio da atividade sindical.
Outros estudos apontam como o STF se deixou levar pelo ideário econômico que vê na proteção ao trabalhador um custo de produção, e aceita reduzir o direito do trabalho a contrato privado. Nessa relação, o trabalhador seria livre para se deixar explorar. Uma ideia pré-constitucional. Essa onda jurisprudencial ecoa a Era Lochner da Suprema Corte americana que, nos anos 1920, enxergou no regime de 18 horas diárias de trabalho nas padarias apenas liberdade dos padeiros.
Quando observamos o hábito normalizado de ministros de cortes superiores frequentarem eventos do Grupo Lide, Grupo Esfera, Fiesp, IDP ou qualquer grupo que cultive a alergia ao direito do trabalho, não surpreende que saiam convencidos de que o sofrimento a ser priorizado pelo juiz constitucional é o sofrimento do empresário. Ao se permitirem esse tipo de encontro exclusivo, também nos autorizam esse tipo de desconfiança.
Está na pauta do STF de 8 de fevereiro o julgamento de ação proposta pela Rappi Brasil. Decisões de tribunais regionais do trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho reconheceram vínculo empregatício na relação de trabalhadores de aplicativos de intermediação. Para a empresa, há apenas um "motociclista parceiro" livre para trabalhar. Por isso pede ao STF que deixe essa bonita relação contratual livre do direito do trabalho.
Pode ser o tiro último e definitivo num edifício de proteção ao trabalhador construído durante quase um século. Um pacto que merece ajuste e aperfeiçoamento, não extinção.
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