segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

ESTADÃO / BRASIL Como Florestan Fernandes e a sociologia da USP ajudaram o Brasil a debater racismo e desigualdade

 Até meados dos anos 1950 prevalecia no Brasil a ideia da democracia racial, preconizada no clássico Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, publicado em 1933. A noção de que o preconceito contra os negros tem grande influência na formação da nação só seria consolidada em 1964, quando Florestan Fernandes (1920-1995) defendeu a tese A integração do negro na sociedade de classes ao assumir a cátedra de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), que completa 90 anos neste mês.

“Sem dúvida, Florestan tem contribuição importante, foi icônico nesse aspecto, ao construir uma sociologia de interpretação do Brasil e da questão racial entre nós”, afirma o sociólogo Ronaldo Tadeu de Souza, pesquisador na área de Ciência Política na USP e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos. “Ele colocou em xeque as posições interpretativas de Casa Grande & Senzala e apresentou outra leitura do Brasil e uma interpretação da questão do negro na formação do País. Muito do que ele escreveu tem grande repercussão nos debates contemporâneos.”

Florestan Fernandes durante simpósio de educação em São Paulo
Florestan Fernandes durante simpósio de educação em São Paulo Foto: PAULO CESAR BRAVOS/ESTADÃO - 29/9/1989

Ronaldo Tadeu de Souza segue em sua análise: “Gilberto Freyre percebe algo que distingue o Brasil dos Estados Unidos, ele olha para a nossa paisagem social e vê um país miscigenado, em que brancos e negros interagem em determinados espaços, em que há combinação entre a cultura branca europeia e a cultura negra africana”, sustenta Souza. “Mas, o que Florestan mostra é que, mesmo sendo um país miscigenado, o Brasil é um país racista; ou seja, a miscigenação não desfez o problema do racismo.”

Diferentemente de seus parceiros na USP, a grande maioria oriunda da elite paulistana ou mesmo francesa, Fernandes era filho de uma imigrante portuguesa analfabeta, que trabalhava como lavadeira. Não chegou a conhecer o pai e começou a trabalhar com apenas seis anos, como ajudante de barbeiro. Na terceira série primária teve de abandonar os estudos para seguir trabalhando. Só voltou a estudar aos 17 anos, quando alguns antigos professores conseguiram para ele um emprego diurno e o incentivaram a fazer supletivo.

Em 1941, foi aprovado no curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Teve de aprender Francês sozinho para conseguir acompanhar parte das aulas, ministradas por docentes estrangeiros, mas acabou se tornando professor.

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“Florestan foi um menino muito pobre que se manteve fiel a suas origens ao criar a sociologia crítica, em que combinou tudo o que aprendeu com Roger Bastide (1898-1974) e outros intelectuais franceses com a realidade brasileira”, aponta a professora Janice Theodoro, que conviveu com Florestan na USP.

“Foi o primeiro intelectual disposto a pensar a história do Brasil não como Gilberto Freyre, mas de forma muito mais dura, apontando as contradições, mostrando a questão racial e a questão de uma sociedade de classes. Expressou as contradições do Brasil profundo sem esquecer de ninguém, nem dos negros nem dos indígenas.”

 A socióloga Janice Theodoro, professora aposentada da USP, conviveu com Florestan Fernandes na universidade
A socióloga Janice Theodoro, professora aposentada da USP, conviveu com Florestan Fernandes na universidade  Foto: Epitácio Pessoa/Estadão

Os indígenas estiveram presentes em seus estudos de mestrado e doutorado. Mas, a questão do negro surgiu posteriormente, sobretudo a partir de 1954, quando a Unesco propôs um projeto sobre a questão racial no Brasil. O trabalho assinado pelo sociólogo e antropólogo francês Roger Bastide, que era o titular da cadeira de Sociologia da USP, e por Florestan Fernandes deixava claro que o País não era uma democracia racial.

“Eles demonstraram que essa concepção do Brasil como democracia racial era um engano e que havia, sim, preconceito no Brasil, que escamoteamos o racismo e que, no pós-escravidão, não foi dada aos negros a oportunidade de se integrar à sociedade, ficando sempre relegados às margens”, explica a vice-reitora da USP, a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda.

Para ela, Florestan Fernandes construiu um novo paradigma de interpretação do capitalismo. “Por conta de sua origem e condição social, ele construiu um novo lugar a partir do qual olhar”, afirma a socióloga. “E o olhar desse lugar permitiu iluminar outras dimensões que estavam no escuro.”

Com a ditadura militar que se instalou no País a partir de 1964, Fernandes teve seus direitos políticos cassados pelo Ato Institucional número 5 (AI-5), em 1968, e foi afastado da USP. Exilado no Canadá, se tornou professor da Universidade de Toronto e só voltou em 1972. Nos anos 1980, já na redemocratização, foi eleito deputado constituinte pelo PT e reeleito em 1990.

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“Ele inaugura um debate político, para além da academia, quando vai para o Congresso como deputado constituinte junto com outros nomes como Benedita da Silva e Abdias do Nascimento”, lembrou a historiadora Iraneide Soares da Silva, da Universidade Estadual do Piauí, presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. “Embora o lugar de fala dele não seja o do homem preto, como era o do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), frequentemente negligenciado, ele tem contribuição importante para o debate.”

“Florestan continua dialogando com os dilemas contemporâneos, é atual”, resume Janice.

* Este conteúdo foi produzido em parceria com a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros

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