terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Cheia de magia, rua Aurora inspirou 'Saudosa Maloca', Blog ANDANÇAS NA METRÓPOLE, FSP

 Vicente Vilardaga

SÃO PAULO

A rua Aurora, caminho vertebral da velha Boca do Lixo, em São Paulo, é cheia de surpresas.

Foi ali, por exemplo, no número 54, que nasceu o escritor Mário de Andrade, em 1893, num prédio que não existe mais e foi substituído por lojas de equipamentos eletrônicos. Poucos metros adiante, no número 72, o homicida Francisco da Costa Rocha, o Chico Picadinho, cometeu seu primeiro crime, o assassinato da bailarina austríaca Margareth Suida, em 1966.

Não bastassem esses fatos notáveis ou escabrosos, a Aurora foi também o lugar da residência do cantor e compositor Adoniran Barbosa, nome artístico de João Rubinato, que dividia um apartamento no Edifício Santa Ignez, no número 579, com a mulher Matilde e o cachorro Peteleco, com quem costumava passear e fazer escalas em botecos.

Prédio onde Adoniran morou
O prédio onde Adoniran Barbosa morou, na rua Aurora - Vicente Vilardaga

O mais interessante é que o primeiro grande sucesso de Adoniran como compositor, a música "Saudosa Maloca", foi concebida no apartamento do Santa Ignez, enquanto ele observava a mudança da paisagem ao redor e conversava com moradores de rua.

Em vídeo de divulgação de um filme sobre Adoniran chamado justamente de "Saudosa Maloca", que será lançado no próximo dia 22 de fevereiro, dirigido por Pedro Serrano e com Paulo Miklos no papel do sambista, o produtor e apresentador musical Paulo Arruda conta que Adoniran fez amizade com um sem-teto chamado Mario, de apelido Mato Grosso, que lhe revelou que a perda da "maloca querida" estava próxima. Um edifício alto iria substituir o "palacete abandonado". O tal palacete, diz Arruda, era o antigo Hotel Albion, e Mato Grosso vivia no local no meio dos escombros.

Uma noite, num passeio com Peteleco pela Aurora, Mato Grosso contou para Adoniran que os moradores que se protegiam ali seriam desalojados. Triste com o drama do amigo da rua e de outras pessoas que moravam no terreno, Adoniran chegou em casa e compôs o samba inteiro em uma só penada, tocado pela emoção. Quanto ao Joca foi pura invenção poética, criada para rimar com maloca. O legal da história é que o sambista se inclui entre os moradores de rua e vive na pele, com empatia, o sofrimento da perda do precário lar, do velho barracão.

"Saudosa Maloca", composta em 1951, foi o primeiro grande sucesso do compositor que fazia economia para ter sua residência própria e sair do apartamento no centro. Com o dinheiro que a música rendeu, comprou dois terrenos na Vila Inglesa, no bairro da Cidade Ademar, no extremo sul da cidade. Lá construiu uma casa para onde teria se mudado em meados dos anos 1950.

A placa da prefeitura colocada no Edifício Santa Ignez indica que Adoniran viveu no local entre 1949 e 1962. Mas as datas são controversas. Um sobrinho do cantor, Sérgio Rubinato, disse para o jornal da Cidade Ademar O Bairro, em entrevista em 2020, que o sambista passou a morar na região em 1955, na rua Coronel Francisco Júlio Cesar Alfieri, número 406, onde ficou até morrer, em 1982.

Placa do lugar da saudosa maloca
Placa sobre 'Saudosa Maloca', na rua Aurora - Vicente Vilardaga

"Saudosa Maloca" retrata precocemente um drama atual: o problema dos sem-teto e dos moradores de rua que perambulam pela cidade —inclusive pela rua Aurora. A música mostra que a situação de carestia e falta de residência já estava colocada na década de 1950, assim como a voracidade imobiliária que levava as construtoras a erguerem seus arranha-céus em cima dos prédios históricos que compunham a velha cidade. Hoje, conta-se nos dedos o número de construções centenárias que restam na Aurora.

Prédio erguido sobre a saudosa maloca
Prédio erguido sobre a 'Saudosa Maloca' de Adoniran, na rua Aurora - Vicente Vilardaga

O que não se pode negar é que a rua Aurora é cheia de magia, um lugar abençoado do centro da cidade, que provoca ao mesmo tempo medo, pelos problemas de segurança, e encantamento. Viver ali pode ser aparentemente um grande risco, mas é também um privilégio por conta do burburinho urbano e da diversidade humana. É um lugar onde dá para sentir a cidade pulsar, onde os dias são agitados pelo comércio vigoroso e a noite pelos personagens que saem das sombras. É uma rua que provoca paixões, onde um maluco como Picadinho pode ter um surto. E onde o grande Mario de Andrade nasceu e queria deixar seus pés fincados quando morresse, como confessou no poema "Quando Eu Morrer", publicado em "Lira Paulistana"


Nenhum comentário: