domingo, 28 de janeiro de 2024

Alexa, em quem devo votar?, José Henrique Mariante, FSP (definitiva)

 Noites de Redação atravessadas por acontecimentos inesperados, catástrofes, grandes verdades e bobagens ditas, vazadas ou reveladas, sedimentaram em gerações de profissionais de imprensa a certeza de que, se uma circunstância tem a chance de piorar, no jornalismo ela sempre piorará.

Talvez a máxima faça lembrar o clichê da Lei de Murphy, mas aqui é diferente, a fatalidade é a alheia. Não é o seu pão que caiu com o lado da manteiga para baixo, mas o dos outros, de alguém ou de milhões. Sua falta de sorte é nada perto do resto, mas isso é detalhe, assim como o plano pós-plantão, quando havia um, frustrado pela notícia.

O ano eleitoral de 2024 vai ser muito pior do que o anterior. A pancadaria de 2022, em alguns aspectos, terá a proporção de uma disputa de centro cívico. A inteligência artificial já interfere nas expectativas meses antes dos pleitos.

Uma gravação com a voz de Joe Biden foi disparada por telefone em New Hampshire, durante as prévias da semana passada. Soa tosco, mas o Biden falso pedia aos eleitores que não votassem nele. O planeta não estaria na lama atual se tosco fosse nota de corte. Não é, muito pelo contrário.

Se o prognóstico para as eleições assusta, o do jornalismo não é nem um pouco auspicioso. Conviveremos, ou melhor, já estamos convivendo com fake news, deepfakes, plágios e Redações esvaziadas por otimização e eufemismos do tipo.

Um nadador dentro de uma lâmpada cuja luz está pela metade. O fundo é escuro.
Folhapress

Teste publicado pelo jornal The New York Times convida os leitores a julgar se uma imagem mostrada é a de um humano de verdade ou gerada por IA. As máquinas são melhores em criar simulacros de pessoas brancas, pois os bancos de dados usados nos treinamentos carregam viés racista, com menos imagens de não brancos. Saber isso pouco ajuda, pois o teste é insidioso. Pesquisadora citada na reportagem também nota um exagerado grau de autoconfiança em quem participa do experimento. As imagens parecem muito reais, deixando a maioria dos observadores tão convicta como vulnerável.

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Sobrará mutreta, mas riscos de inovação e de mercado também espreitam o jornalismo. Relatório do Instituto Reuters, que aferiu o humor de 314 editores em mais de 50 países, prevê um ano de inteligência artificial disruptiva, como se não fossem suficientes as guerras em curso e o carregado calendário eleitoral. "Jornalistas e organizações precisarão repensar seu papel e propósito com alguma urgência", diz o documento, em tom polido, sobre o tamanho da encrenca.

Dos entrevistados, 70% acreditam que a inteligência artificial terá impacto negativo na já abalada confiança no noticiário. Para quase um terço (31%), um grande impacto. O estudo rememora um raciocínio de Hannah Arendt, que se encaixa perfeitamente na era contemporânea apesar de formulado décadas atrás: o maior perigo pode não ser as pessoas acreditarem em mentiras, mas ninguém acreditar em mais nada nunca mais.

Sobram variáveis na equação, boa parte fora do raio de influência da imprensa. A começar pelo público consumidor de notícia e pela assimilação das novas tecnologias, despejadas em velocidade assustadora. Há quem veja, por exemplo, um novo impulso de consumo de informação por meio dos assistentes virtuais, que ficarão, não apenas na casca, algo inteligentes. Ou o grande potencial de prejuízo dos jornais, cujo conteúdo será desprezado por buscadores que geram as próprias respostas (apenas vaticínio há coisa de um ano, quase o cotidiano no momento atual). Existe a questão da regulação das redes sociais e da própria IA em diversos países. E também os aspectos domésticos, como o do Brasil, que assiste a uma ofensiva jurídica e policial contra parlamentares e influenciadores bolsonaristas, disputa longe de uma conclusão rápida ou fácil.

A despeito de tantas dúvidas, à Reuters alguns executivos de mídia se disseram otimistas. Em reação a uma propalada inundação de "conteúdo sintético inconfiável", a audiência correria de volta para o jornalismo profissional. Assim sucedeu na pandemia.

Outros, no entanto, temem a hipótese Arendt, com a perda de confiança total em qualquer tipo de informação. Para quem achou que o começo da coluna era apenas um chiste, pense de novo e aperte o cinto, pois 2024 está só começando.

OS QUE EVITAM

O fenômeno é antigo, mas a preocupação da mídia é crescente com quem evita ou se diz cansado de tanta notícia. Uma receita antiga da imprensa para isso, ainda muito em voga por estes lados, é forçar a edição de boas notícias ou de reportagens de entretenimento. Os dois tópicos, porém, são os menos citados por editores no relatório do Instituto Reuters. As grandes apostas são "explicar melhor histórias complexas", "jornalismo que aponte soluções" e "histórias humanas inspiradoras". Jornal tem que valer a pena ler, não distrair.


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