Mal nos limpamos da areia contrabandeada do Réveillon, e o ano já chega repleto de propostas de trabalho, estudo, esporte e lazer. Energias renovadas e um certo erro de cálculo nos fazem crer que as promessas assumidas hoje encontrarão a mesma pessoa para pagá-las amanhã. Entre o entusiasmo, a onipotência e a lógica neoliberal, vemos nosso carnê de baile ser preenchido, antes mesmo de nos perguntarmos se queremos sair para dançar.
Agenda cheia é a marca da pessoa produtiva e cheia de energia, ou seja, eternamente jovem e bem-sucedida. Não se trata do caso do trabalhador precarizado, cujo deslocamento para o emprego ocupa grande parte do dia, da paciência e da saúde. Esse sonha com tempo livre do qual não pode dispor, pois seu sustento está sob ameaça perene.
Aqui abordo a camada da sociedade que pode se dar ao luxo de desacelerar e não o faz, atribuindo à correria desatinada um valor que é perceptível já no trato com as crianças.
Pegue a agenda de qualquer bebê de classe média ou média alta e você verá uma profusão de atividades impensáveis há algumas décadas. Natação, línguas, recreação assistida, ioga, redes virtuais, enfim, a ideia de estimular a aprendizagem já começa no berço com brinquedos que precisam cumprir funções específicas e manter as crianças entretidas o tempo todo.
Curiosamente, como tiro saindo pela culatra, estamos lidando com a primeira geração com o coeficiente de inteligência (QI) inferior aos dos pais. O tema não é estranho ao público desde a publicação de "A Fábrica de Cretinos Digitais" (2020) do neurocientista francês Michel Desmurget.
Em "O Despertar de Tudo: uma nova história de humanidade" (2022), David Graeber e David Wengrow apontam um fato interessante sobre a diferença de estilo de vida dos povos originários e do povo colonizador nas Américas. As pessoas sequestradas por indígenas, quando retornavam enfim a seus lares, descobriam preferir morar com os sequestradores. São inúmeros os casos no quais, na comparação entre indígenas e modernos, ganham os primeiros. Ali, onde a luta pela sobrevivência pode parecer mais brutal e selvagem, são os valores sociais que pesam na escolha.
O maior deles é a liberdade —sexual, moral, no uso do tempo, do corpo—, tão pateticamente alardeada pelo homem moderno, mas que não chega aos pés do que encontraram entre os indígenas. Vale a leitura.
Os valores de um povo se manifestam em nós a partir de nossas identificações com eles, nesse sentido, somos responsáveis por reproduzi-los e por resistir a eles.
Acostumada a receber convites para falar em diferentes instituições e sem poder atender a todas, me surpreendi com uma resposta específica a uma negativa minha. A pessoa queria entender "porque eu não iria falar num evento que, afinal, era à noite, só durava duas horas e era perto da minha casa" (!). Para me justificar desfilei o rosário dos compromissos que assumi logo nos primeiro dias do ano: consultório, aulas, grupos de estudo, livro, artigos para esse jornal, coordenação de um instituto… A petulância diante do meu "não" seria só uma anedota, se não me tivesse percebido tão irritada. Daí, claro, já não se trata da falta de sensibilidade do anfitrião, a quem respondi educadamente, mas de um nervo pinçado em mim.
Meu mal-estar decorria do fato de eu me cobrar aceitar "um evento à noite, que só dura duas horas e é perto da minha casa". Minha resposta apresentando os compromissos previamente assumidos era para aplacar a fúria de um superego que se espelha em um fazer sem descanso. Daí que se quisermos rever uma produtividade que começa logo ao abrir os olhos com o uso do celular trabalhando para as redes virtuais, teremos que dizer não para nós mesmos antes de tudo.
2024 está mal começando, não deixemos que comece mal.
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