segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Onde a direita e esquerda se encontram, Becky S. Korich, FSP

 Especula-se que se o comandante do Titanic tivesse virado o navio para a esquerda, e não para a direita como teria feito, poderia ter desviado do iceberg e evitado o naufrágio mais conhecido da história. Mas, tomado pelo pânico, o comandante desnorteado virou para o lado errado e deu no que deu. Saber distinguir a esquerda da direita pode ser vital.

Na política não é diferente. As definições de direita e esquerda, que eram cristalinas na sua origem, estão cada vez mais turvas. Os posicionamentos se enrijeceram como icebergs e partiram a humanidade ao meio. Naufragamos em um mar cheio de peixinhos que são levados pelas correntes, sem saber de onde elas vieram e para onde os levará. Os tubarões agradecem.

Titanic
Especula-se que se o comandante do Titanic tivesse virado o navio para a esquerda, e não para a direita, ele poderia ter evitado o naufrágio - Domínio Público

Tudo hoje se resume em direita e esquerda. Não há discursos ou conversas políticas em que o binarismo não fale mais alto. Mas a categorização entre dois polos distintos (que às vezes se igualam nos métodos e invariavelmente se encontram nas extremidades) é demasiadamente simplória para abranger a complexidade política de uma sociedade. A obstinação por ideologias engessadas, que hoje mais se assemelham a seitas, já afetou o princípio básico das democracias: a liberdade de pensamento. Estamos cada vez mais rendidos a uma ditadura ideológica.

O fundamento identitário se resume a não ser o que o outro é. Assim, cada polo se representa como o oposto do outro, embora não tenha uma posição clara e positiva em si mesmo. A direita quer acabar com a esquerda e vice-versa, mas uma não vive sem a outra, pois sua identidade se resume em "não ser" a outra.

Qualquer asneira que um sujeito possa falar será endossada desde que saia da boca de alguém do "grupo dos bons" (ou seja, a bolha a que o sujeito pertence). Essa dislexia identitária faz com que as pessoas enxerguem mal, como se estivessem usando lentes invertidas: nenhum dos olhos consegue ter uma boa visão.

Há tempos que a opressão virou o centro da disputa. A ideologia pop é ágil ao rotular quem são os culpados e os inocentes, os certos e os errados. Quem pensa diferente é vítima da mesma opressão a que se supõe combater. Cancelamentos, boicotes, discursos de ódio, agressões, tudo para calar a voz dissonante. Simples (e raso) assim: nenhum pensamento é válido se não for igual ao meu. Todos os outros são ignorantes ou canalhas –ou os dois. Trata-se de uma questão moral, e, assim, a figura do "adversário ideal" é desenhada com muita imaginação e recebe o rótulo de opressor.

A natureza repressiva, que antes pertencia predominantemente aos denominados liberais, ultrapassou a barreira e contaminou os que se apresentam como progressistas. Ambos os polos se hostilizam mutuamente e são igualmente intolerantes ao outro. Prova de que o discurso maniqueísta apenas reproduz as injustiças que diz confrontar.

As inversões e enxertos mútuos aos posicionamentos políticos criaram uma zona cinzenta de indistinção. E é nessa zona cinzenta que as pessoas menos usam a sua massa cinzenta. A direita chama a esquerda de comunista, a esquerda chama a direita de fascista, como se fosse a mesma coisa. O paradoxo é que um polo acaba servindo como cabo eleitoral do outro.

A Teoria da Ferradura, desenvolvida pelo filósofo francês Jean-Pierre Faye em 2002, estampa bem a situação. De acordo com ela, o caminho que leva a esquerda para a direita não segue uma linha reta, e sim um caminho em forma de ferradura. Nas duas extremidades estão os grupos que querem exercer o controle sobre os indivíduos, sobrando, na curva da ferradura, um espaço estreito para ideias libertárias e análises críticas legítimas. Prevalece a militância pela militância, onde se alimenta o identitarismo barato.

Para ser de esquerda ou de direita, ninguém precisa comprar o pacote completo, pois ideais de verdade só existem se não estiverem encarcerados em si mesmos –do contrário será mera obediência.

Para que a liberdade de pensamento não morra, não precisamos ser politicamente corretos, basta que sejamos politicamente civilizados.

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