segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

No cinema, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, João Pereira Coutinho \fsp

 "Por que ler os clássicos?", perguntam os eruditos. As respostas são igualmente eruditas, mas não precisam ser. Os clássicos também servem para vermos filmes indicados ao Oscar e concluir que, no cinema, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.

Basta assistir a "Pobres Criaturas", de Yorgos Lanthimos, e "Os Rejeitados", de Alexander Payne.

Mulher artificial, com olhos arregalados e cabelo esvoaçante tem sua cabeça cheia de tubos e fios
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho - Angelo Abu

O primeiro, segundo a crítica, é um "Frankenstein" feminino, com uma mulher substituindo a criatura do famoso médico insano.

Superficialmente, talvez seja: encontramos o mesmo cientista em busca da ressurreição terrena. E o seu Lázaro, aqui, é uma pobre suicida, que ele recupera das águas do Tâmisa, para lhe implantar o cérebro do bebê que tinha no ventre.

Assim nasce Bella —corpo de mulher, cabeça de criança. E assim aprenderá a falar, a andar, a comer, a ler, a escrever e, quase por acidente, a experimentar os prazeres íntimos da existência.

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Segue-se a viagem de descoberta a uma Lisboa reimaginada, onde os bondes circulam no céu e só os pastéis de nata parecem reais. Para além do fado, claro, aqui na voz da sempre extraordinária Carminho.

Depois vem Alexandria e os seus pobres, Paris e as suas putas, novamente Londres para o grande final, quando Bella já é mulher feita.

Por mais tentador que seja ver aqui "Frakenstein", é o mito do Pigmaleão, sobretudo na versão contada por Bernard Shaw em peça homônima, que inspira o tema do filme.

O mesmo desejo (masculino) de submeter e condicionar a mulher; e o mesmo desejo (feminino) de se libertar dos homens e das suas demandas autoritárias e ridículas.

Bella é uma espécie de Eliza Doolittle, embora mais carnívora, sexualmente falando, do que a vendedora de flores que inspirou Bernard Shaw.

E mais punitiva também: ela vai mastigando e cuspindo os homens que pretendem possuí-la (na dupla acepção da palavra) ao praticar, tão só, a mesma ética libertária que eles, os machos, pensavam ser algo exclusivo do clube.

Haverá maior castigo do que esse? Virar o feitiço contra os feiticeiros e reduzir os machos à histeria, essa doença que, no século 19, era o perfeito estigma social para manter as mulheres na sua gaiola?

"Os Rejeitados" é feito de outro ritmo. Mas, assistindo ao filme de Alexander Payne, a minha cabeça voltou a evadir-se para a literatura: como escapar ao "Conto de Natal" de Charles Dickens?

Mister Scrooge tinha encarnado no professor Hunham (prodigioso Paul Giamatti) porque ambos são almas gêmeas no desprezo pelo próximo. No filme, o próximo são os alunos, os colegas, a humanidade em geral.

A humanidade dos vivos, entenda, porque dos mortos ele gosta: como professor de civilizações antigas, ele trata Tucídides e Cícero como amigos.

Mas eis que o humor do homem piora quando descobre que terá de ficar na escola nas férias natalinas para tomar conta de um aluno rebelde. Não que ele tivesse outros planos: solitário e misantropo, ele ficaria na escola de qualquer jeito. Mas com seus livros, seus silêncios, suas sombras.

Sem contato com a espécie.

Não vai acontecer. E, como na história de Dickens, o professor Hunham será visitado pelos fantasmas da sua vida —e a visão que eles oferecem não é inspiradora.

Um passado de segredos vexatórios, que põem em causa a sua autoproclamada virtude pedagógica.

Um presente onde é odiado e ridicularizado pelos alunos, o supremo fracasso de qualquer professor.

Será que ele ainda tem tempo de mudar o futuro e resgatar a sua vida da derrota?

E será o aluno rebelde a sua salvação? Aliás, serão os dois a salvação um do outro?

O filme de Alexander Payne, tal como a história de Dickens, é um conto moral sobre as segundas oportunidades. E de como elas só surgem quando reconhecemos o fracasso das primeiras, por nossa culpa, nossa tão grande culpa.

É por isso que, no bar imaginário onde se encontram os personagens dos filmes, imagino sem esforço que Bella e o professor Hunham teriam muito o que falar.

Bem vistas as coisas, são dois sobreviventes de um mundo para onde foram jogados sem escolha —mas do qual se preservaram ao escolherem a sua própria liberdade interior.


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