"Por que ler os clássicos?", perguntam os eruditos. As respostas são igualmente eruditas, mas não precisam ser. Os clássicos também servem para vermos filmes indicados ao Oscar e concluir que, no cinema, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.
Basta assistir a "Pobres Criaturas", de Yorgos Lanthimos, e "Os Rejeitados", de Alexander Payne.
O primeiro, segundo a crítica, é um "Frankenstein" feminino, com uma mulher substituindo a criatura do famoso médico insano.
Superficialmente, talvez seja: encontramos o mesmo cientista em busca da ressurreição terrena. E o seu Lázaro, aqui, é uma pobre suicida, que ele recupera das águas do Tâmisa, para lhe implantar o cérebro do bebê que tinha no ventre.
Assim nasce Bella —corpo de mulher, cabeça de criança. E assim aprenderá a falar, a andar, a comer, a ler, a escrever e, quase por acidente, a experimentar os prazeres íntimos da existência.
Segue-se a viagem de descoberta a uma Lisboa reimaginada, onde os bondes circulam no céu e só os pastéis de nata parecem reais. Para além do fado, claro, aqui na voz da sempre extraordinária Carminho.
Depois vem Alexandria e os seus pobres, Paris e as suas putas, novamente Londres para o grande final, quando Bella já é mulher feita.
Por mais tentador que seja ver aqui "Frakenstein", é o mito do Pigmaleão, sobretudo na versão contada por Bernard Shaw em peça homônima, que inspira o tema do filme.
O mesmo desejo (masculino) de submeter e condicionar a mulher; e o mesmo desejo (feminino) de se libertar dos homens e das suas demandas autoritárias e ridículas.
Bella é uma espécie de Eliza Doolittle, embora mais carnívora, sexualmente falando, do que a vendedora de flores que inspirou Bernard Shaw.
E mais punitiva também: ela vai mastigando e cuspindo os homens que pretendem possuí-la (na dupla acepção da palavra) ao praticar, tão só, a mesma ética libertária que eles, os machos, pensavam ser algo exclusivo do clube.
Haverá maior castigo do que esse? Virar o feitiço contra os feiticeiros e reduzir os machos à histeria, essa doença que, no século 19, era o perfeito estigma social para manter as mulheres na sua gaiola?
"Os Rejeitados" é feito de outro ritmo. Mas, assistindo ao filme de Alexander Payne, a minha cabeça voltou a evadir-se para a literatura: como escapar ao "Conto de Natal" de Charles Dickens?
Mister Scrooge tinha encarnado no professor Hunham (prodigioso Paul Giamatti) porque ambos são almas gêmeas no desprezo pelo próximo. No filme, o próximo são os alunos, os colegas, a humanidade em geral.
A humanidade dos vivos, entenda, porque dos mortos ele gosta: como professor de civilizações antigas, ele trata Tucídides e Cícero como amigos.
Mas eis que o humor do homem piora quando descobre que terá de ficar na escola nas férias natalinas para tomar conta de um aluno rebelde. Não que ele tivesse outros planos: solitário e misantropo, ele ficaria na escola de qualquer jeito. Mas com seus livros, seus silêncios, suas sombras.
Sem contato com a espécie.
Não vai acontecer. E, como na história de Dickens, o professor Hunham será visitado pelos fantasmas da sua vida —e a visão que eles oferecem não é inspiradora.
Um passado de segredos vexatórios, que põem em causa a sua autoproclamada virtude pedagógica.
Um presente onde é odiado e ridicularizado pelos alunos, o supremo fracasso de qualquer professor.
Será que ele ainda tem tempo de mudar o futuro e resgatar a sua vida da derrota?
E será o aluno rebelde a sua salvação? Aliás, serão os dois a salvação um do outro?
O filme de Alexander Payne, tal como a história de Dickens, é um conto moral sobre as segundas oportunidades. E de como elas só surgem quando reconhecemos o fracasso das primeiras, por nossa culpa, nossa tão grande culpa.
É por isso que, no bar imaginário onde se encontram os personagens dos filmes, imagino sem esforço que Bella e o professor Hunham teriam muito o que falar.
Bem vistas as coisas, são dois sobreviventes de um mundo para onde foram jogados sem escolha —mas do qual se preservaram ao escolherem a sua própria liberdade interior.
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