terça-feira, 30 de janeiro de 2024

As desigualdades como modelo de negócio, FSP


Katia Maia

Socióloga e diretora-executiva da ONG Oxfam Brasil

Jefferson Nascimento

Advogado e coordenador de justiça social e econômica da Oxfam Brasil


No início de 2021, diante do avanço da vacinação contra a Covid-19, muita gente celebrou a conquista como sinal de que a humanidade sairia melhor de uma pandemia que já havia tirado a vida de milhões de pessoas. Três anos depois, infelizmente, os sinais apontam para outra direção.

A riqueza das cinco pessoas mais ricas do mundo –todos homens brancos– aumentou 114% desde 2020. No mesmo período, 5 bilhões de pessoas da base da pirâmide de renda viram sua vida piorar. Neste ritmo, em dez anos veremos um trilionário caminhar sobre um planeta cada vez mais impactado pela crise climática e pela insegurança alimentar. E, no atual passo, 230 anos serão necessários para erradicar a pobreza global.

Esses são alguns dados do relatório "Desigualdade S.A.", lançado pela Oxfam às vésperas da reunião de 2024 do Fórum Econômico Mundial, ocorrida em meados de janeiro em Davos.

Cartaz no Centro de Congressos antes da reunião anual do Fórum Econômico Mundial - Denis Balibouse - 13.jan.2024/Reuters

A policrise global tem sido a marca do início dos anos 2020, conjugando uma pandemia global, guerras, a explosão do custo de vida e colapso climático. Cada uma dessas crises contribuiu para aumentar a distância entre os super-ricos que dominam as engrenagens do sistema e todos os demais.

Para essa oligarquia de hiperprivilegiados, os últimos anos têm sido magníficos: o patrimônio dos bilionários cresceu a uma taxa três vezes superior à inflação nos últimos três anos, ampliando-se em US$ 3,3 trilhões desde 2020. O 1% mais rico do mundo, por sua vez, detém 43% de todos os ativos globais.

O aumento da riqueza bilionária está vinculado ao crescimento do poder de empresas e monopólios globais. Das 50 maiores empresas com ações negociadas em bolsas, 34% delas, com valor de mercado de US$ 13,3 trilhões, têm bilionários como CEOs ou principais acionistas.

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O poder sobre esses leviatãs do capitalismo global permite aos bilionários maximizarem lucros por meio da concentração monopolística de mercado, em detrimento dos trabalhadores e da sociedade em geral.

A luta sindical, ferramenta importante no enfrentamento do cenário de piora das condições laborais, tem sido boicotada pelas grandes empresas, que atuam para impedir a sindicalização de trabalhadores.

Esse cenário global tem exemplos importantes no Brasil. Desde 1996, a distribuição de lucros e dividendos por empresas não é tributada na pessoa física. Somente em 2021, R$ 411,9 bilhões recebidos pelo 1% mais rico do país deixaram de ser taxados no IRPF (Imposto de Renda de Pessoa Física). Trata-se de um valor quase três vezes superior ao orçamento aprovado para o Bolsa Família em 2024.

Ao mesmo tempo, a recuperação do emprego a níveis pré-pandemia tem ocorrido principalmente pelo avanço do trabalho sem carteira assinada, que atinge patamar similar ao trabalho formal no Brasil: um evidente sinal de precarização.

As desigualdades são ainda maiores quando se olha para os fatores de gênero e raça: a população branca ocupada ganha 61,4% a mais do que a população negra, e a taxa de informalidade entre mulheres negras (46,8%) e homens negros (46,6%) é superior àquela entre mulheres brancas (34,5%) e homens brancos (33,3%).

No Brasil, nada ilustra tão bem esse contexto de prosperidade no topo às custas da base como o caso das Lojas Americanas.

Há cerca de um ano, foi revelada a fraude contábil de R$ 20 bilhões cometida pela própria varejista, que se encontra em recuperação judicial, com uma dívida estimada de US$ 42,5 bilhões.

Estima-se que a empresa tenha demitido mais de 10,6 mil funcionários, numa redução de 25% do quadro de trabalhadores. Mas, nesse mesmo período, três dos principais acionistas das Americanas (Carlos Alberto SicupiraJorge Paulo Lemann e Marcel Herrmann Telles), que integram a lista dos dez maiores bilionários do Brasil, ficaram R$ 16 bilhões mais ricos.

Reduzir desigualdades exige medidas urgentes, incluindo fortalecer o papel estratégico do Estado em setores como saúde, educação, energia e transporte, e controlar o poder excessivo das grandes corporações p or meio da quebra de monopólios e do ajuste das leis de patentes, por exemplo.

No Brasil, é fundamental reestabelecer a taxação sobre lucros e dividendos no IRPF, assegurar o fortalecimento da organização sindical e o respeito aos direitos de pessoas trabalhadoras, além de aprovar legislação prevendo mecanismos mandatórios de devida diligência em direitos humanos pelas empresas. Trata-se de medidas importantes em prol de mais justiça e menos desigualdades, no Brasil e no mundo.

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