Quase todos os dias estão à vista no Jornal Nacional casinhas e barracos inundados ou com marcas deixadas pela água lamacenta. Gente pobre chorando pelos móveis e aparelhos perdidos em Porto Alegre, Belo Horizonte, Sorocaba...
Na Vila do Sahy, as sirenes tocaram para sinalizar o risco de desabamentos e repetição da tragédia que arrastou 64 vidas há menos de um ano. Do outro lado do globo, na China, meia centena de pessoas morreram noutro deslizamento de terra.
Viralizaram imagens de ressaca monstruosa arrombando portas e janelas nas ilhas Marshall, oceano Pacífico. Em Bangladesh, reações químicas pela intrusão de água salgada nos lençóis freáticos, com a elevação do mar, ameaçam contaminar com arsênico o suprimento de água para a população.
A ligar esses eventos extremos está a crise do clima desencadeada pelo aquecimento global. Uns poucos termocéticos (ou termocéfalos) ainda negam que a atmosfera esteja esquentando com os gases do efeito estufa que a humanidade nela despeja queimando combustíveis fósseis e florestas.
Se antes desacreditavam dos modelos de simulação do clima por computador, agora lhes compete refutar satélites, termômetros, pluviômetros e anemômetros. Como não podem, correm para o colo de Bolsonaro, Trump, Milei et caterva.
O negacionismo tem aceitação facilitada pela tendência humana a rejeitar explicações complexas e acreditar em soluções simples. Para enfrentar as dúvidas que os céticos semeiam, a ciência encontra apoio crescente nos desastres que se acumulam e nos chamados estudos de atribuição.
Bom exemplo desse novo campo de pesquisa surgiu quarta-feira (24). Um levantamento da rede global de pesquisadores World Weather Attribution anunciou que a mudança climática foi muito mais determinante que El Niño para a seca de 2023 na Amazônia.
Quem mais sofreu com a estiagem inaudita? Ribeirinhos, pescadores, pequenos agricultores que viram o meio de subsistência e transporte convertido num deserto. Gente morena, cafuza, mameluca, indígena —e posseiros brancos expulsos de minifúndios do Sul.
Pobres, enfim. Pessoas na mesma condição dos flagelados de Porto Alegre, BH, Sorocaba, Vila do Sahy... Ou da China, das ilhas Marshall e de Bangladesh. É patente que impactos do aquecimento global castigam mais os habitantes de países e áreas menos desenvolvidas.
Verdade, ocorrem enchentes até em Dubai, San Diego e Auckland. Mas habitantes de cidades afluentes têm mais recursos, serviços e seguros para enfrentar o infortúnio —para não lembrar que também contribuem com mais emissões de carbono para o desastre atmosférico.
Justiça climática: esse é o tema de outro campo acadêmico emergente. A London School of Economics, entre outras instituições, confere destaque para o assunto em seu Instituto Grantham de Pesquisa sobre Mudança do Clima e o Ambiente.
Imagine agora se o nome dessa área de pesquisa e ação política fosse chamada de "imperialismo climático" ou "colonialismo climático". Os liberais de plantão subiriam nas tamancas para execrar, com razão, a mescla exorbitante de ideologia com climatologia.
É óbvio que dilúvios e furacões não escolhem alvos, muito menos sob comando de Wall Street ou do Pentágono. Só que essa crítica hipotética a um rótulo infeliz arriscaria também desviar o foco da questão principal: os pobres já são e serão, cada vez mais, as maiores vítimas do aquecimento global.
É mais ou menos isso que ocorre com a polêmica em torno do "racismo ambiental". Não é um bom nome, por induzir em espíritos simples a ideia fantasiosa de intencionalidade e a reação paranoica que obscurece o que realmente importa: a revoltante desigualdade que torna o Brasil um país tão difícil de defender.
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