segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Edição de Sábado: Os poderes de Dino, MEIO

 

Por Luciana Lima

Logo que chegou ao Salão Azul do Senado, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB-MA), correu para a sala do vice-presidente da Casa, senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB). O presidente, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), estava ausente — havia embarcado, dois das antes, na comitiva de Lula, para a Conferência do Clima (COP-28). Na saída, Dino preocupou-se em passar uma mensagem de pertencimento àqueles corredores. “Conheço bem o mundo político, até porque sou parte dele”, disse o indicado por Lula para ser ministro do Supremo Tribunal Federal. Era o início de sua campanha em busca de votos para poder, brevemente, sair da política e voltar para outros domínios: o do Judiciário.

Ministro de Lula que mais desperta paixões, Dino quis também minimizar as inimizades que colheu nesta esfera ao longo dos últimos 11 meses. Tratou de se colocar como igual e reconhecer os méritos de quem, como ele, chegou à Casa Alta. “Os senadores são todos meus colegas. Todos foram eleitos”, enfatizou. “Eu visito senadores há algumas décadas, desde que fui eleito deputado federal. Muitos senadores foram meus colegas na Câmara antes de serem meus colegas no Senado”, apresentou suas credenciais legislativas, com ar de corporativismo. Flávio Dino vai precisar exercitar bem os músculos políticos para fazer a passagem. A aprovação no Senado é dada como certa, mas nada em Brasília tem garantias cartoriais. Quanto mais destreza política ele exibir, mais vai ter de justificar se será capaz de mudar de figurino, para valer, ao vestir a toga. Ele sabe disso. E já embutiu no discurso a promessa de que consegue. Primeiro, com uma autodescrição singela: “Meu perfil combativo é próprio da política”. Depois, com o compromisso em si. “Evidentemente, quando se muda de função, também se muda o perfil de atuação. Fui deputado, governador, fui juiz federal e cada função tem uma característica e um estilo.”

O rio da democracia

Mas quem será Dino ministro do Supremo, se seu nome for aprovado? Ele fala em “mudar de roupa” ao alternar Poderes e recobra a lembrança do tempo em que foi juiz federal, entre 1994 e 2006. Era uma época em que não havia experimentado a política a fundo. Também não tinha a fama que tem hoje, com 1,1 milhão de seguidores no X.  Nem colecionava tanta rejeição.

Dino já passou pelo Supremo. Foi parte do gabinete do então presidente do STF, Nelson Jobim, em 2005, como juiz-assistente. Um dos contemporâneos desse período foi o ex-ministro Carlos Ayres Britto. “Tenho Flávio Dino como agente público. Ele é do bem e é antes de tudo um democrata”, disse ao Meio. “Não trabalhei com Dino diretamente, mas acompanhei o seu trabalho. Ele sabe o Direito. Além disso, é uma pessoa atualizada cognitivamente. Não é um retrógrado. É uma pessoa que vivencia e encarna os princípios da Constituição.” A percepção que Ayres Britto tem do assessoramento de Dino a Jobim é a de que ele “qualifica as instituições por onde tem passado”. “E ele vai qualificar o Supremo. Essa é a minha firme expectativa”, disse.

Poeta que é, Ayres Britto compara as funções dos poderes ao corpo de um rio. Diz que o Estado tem três vontades decisórias: a legislativa, a executiva e a jurisdicional. “O Legislativo é a nascente desse rio. O Executivo é o leito e o Judiciário é a foz. Tudo começa com o Legislativo, porque a Constituição diz que ninguém é obrigado a fazer alguma coisa, senão em virtude de lei. O Executivo oficia na órbita da execução das leis. Tudo que ele faz é por um pulso interno, próprio. O Judiciário é que precisa de provocação para atuar”, equipara o jurista. “É preciso esse terceiro Poder, o Judiciário, exterior aos outros dois e, funcionalmente, posterior aos outros dois. É também, na forma decisória, superior aos outros dois. É assim em qualquer país civilizado.”

O próprio Dino já declarou como avalia a atuação do Poder para o qual pode retornar agora. “O Judiciário mais acertou do que errou na história do país. É claro que houve vários erros, mas o saldo é positivo. Campos Salles dizia que o STF é o maior responsável pela democracia no país. Já Mangabeira Unger afirma que o STF é o principal culpado pelos desmandos no Brasil. Eu fico no meio termo entre eles”, disse, em entrevista ao Consultor Jurídico. Mais adiante, Dino recorre a um clássico para balizar como entende que um juiz pode se mover entre seus valores e sua função. “Em algumas situações, o Judiciário fica entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade, conforme Max Weber. Na epidemia de Covid-19, o Judiciário, especialmente o STF, teve de priorizar a ética da responsabilidade, especialmente da omissão do governo Bolsonaro em combater o coronavírus. E se mostrou algo necessário.”

Pendurar o costume e vestir a toga, exigência necessária para o desempenho como ministro no entendimento de Ayres Britto, é principalmente “cortar o cordão umbilical” com a política. Notadamente com o presidente Lula, que o indicou, e com os senadores que possivelmente darão seus votos para a aprovação. Para o ministro aposentado, Flávio Dino tem toda condição de discernir “o curso que o rio da democracia tem que trilhar”. “Quando dizem que há um risco de judicialização da política, digo que é a coisa mais normal de acontecer. É o que se espera quando os conflitos não se resolvem amigavelmente. O problema é quando você incide na politização da Justiça. Isso não pode ocorrer. E ele tem noção disso.”

Antes ainda de ir ao Supremo, Dino foi presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil, a Ajufe, entre 2000 e 2002. Foi nessa época, em que comandava a entidade de classe dos magistrados federais do país, que apresentou sua tese de mestrado, intitulada Autogoverno e controle do judiciário no Brasil : uma proposta de criação do Conselho Nacional de Justiça. No texto, de 2001, ele faz uma longa análise da crise do Judiciário, que divide em crise constitucional, de identidade, desempenho e imagem. E, ao mapear as propostas legislativas em trâmite, aponta como havia esforços no sentido “racionalizador” da Justiça — ou seja, de aumento de eficiência e capacidade — e no sentido “democrático”, de ampliação de acesso ao Judiciário e de distribuição interno de poder. Nelson Jobim, além de levar Dino para assessorá-lo em seu gabinete, impressionado também com a capacidade de gestão do assessor, o convocou para formar, enfim, o Conselho Nacional de Justiça, órgão de transparência, controle e melhoria do Judiciário, em 2005. Com esse arcabouço, Dino foi cocriador e o primeiro secretário-geral do CNJ.

Em entrevista ao Valor, Jobim descreveu o pupilo como “cioso” e alguém de muita autonomia — atributos essenciais num magistrado. “É alguém capaz de dizer ‘não’. Ele me disse ‘não’ várias vezes.” Jobim sugere que os tempos não são de purismo. “É muito importante para a Corte, ainda mais nesse momento, a indicação de um ministro que tenha cabeça política. Dino é hábil e não é radical. E ele sabe ouvir e quer ouvir, algo que falta muito no Brasil de hoje.” Habilidade política e lealdade a Lula são dois dos critérios não constitucionais que certamente mais contaram a favor de Dino em sua indicação — além do inestimável apoio dos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, dois dos mais políticos do Supremo. A fidelidade ao presidente ficou mais visível na série de palestras que Dino fazia pelo Brasil enquanto Lula estava preso, em sua defesa. A habilidade política de Dino foi notada lá atrás. Foi Jobim quem aconselhou o assessor a entrar nesse mundo. “Se você se arrepender, faz o concurso de novo”, disse ao auxiliar na época.

Filho de um casal de advogados, Rita Maria e Sálvio, Flávio Dino nasceu em São Luís em 30 de abril de 1968. O pai era político e chegou a ser deputado estadual do Maranhão — o trânsito entre a Justiça e a política vem de berço. Já Dino se formou em direito pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e fez mestrado em direito público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É também professor de Direito Constitucional da UFMA, desde 1993. Ouvindo os conselhos do então chefe, que também circula com desenvoltura entre a magistratura e a política, Dino deixou a vida de juiz e em 2006 foi eleito deputado federal pelo PCdoB. Depois, no governo Dilma Rousseff, foi presidente da Embratur. Em 2014, foi eleito governador do Maranhão e reeleito em 2018. Em abril de 2022, Flávio Dino deixou o cargo para ser candidato ao Senado.

A experiência como governador e depois como ministro da Justiça e Segurança Pública podem dar ao homem da esquerda uma visão, nos termos correntes, menos garantista e mais punitivista do que se imagina. “Ele tem a fama de mão pesada. É aquele negócio também de ter sido governador e precisar lidar com o crime comum, com a criminalidade. De forma arbitrária acho que ele não vai se conduzir, mas não se deve esperar uma postura intensamente garantista não”, avaliou Wadih Damous, secretário nacional do Consumidor e amigo de décadas de Dino, à BBC Brasil.

O acervo de processos deixados por Rosa Weber a seu sucessor é de 344 ações. Sobre o ex-presidente Jair Bolsonaro, há a ação resultante da CPI da Covid-19. Dois dos julgamentos mais divisivos no Supremo, o do aborto e o das drogas, não devem ver os votos de Dino caso ele seja mesmo nomeado. Isso porque, antes de se aposentar, a ministra Rosa já deu seu voto — o que não quer dizer que ele não possa vir a ser chamado a se manifestar sobre os temas. No caso das drogas, por exemplo, tramita no Senado uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que vai no sentido oposto do que já decidiu o Supremo, em mais um capítulo da guerra entre os Poderes. Se aprovada, a Corte pode ter de voltar a discutir a questão. Em relação ao aborto, embora a ministra tenha se manifestado na ação que propõe a descriminalização, há outra que pede a punição de terceiros. Nessa, Dino, se aprovado, será o relator.

De qualquer maneira, após a indicação, Dino tem evitado falar sobre seus posicionamentos a respeito de temas polêmicos. Ao ser questionado, ele alegou que é preciso respeitar a Comissão de Constituição e Justiça, a CCJ, instância na qual ele pretende expor seus entendimentos no próximo dia 13 de dezembro, em sabatina. No passado, no caso do aborto, ele já expressou que é contrário à alteração na lei no sentido de legalizar a prática. Ele se colocou “filosoficamente, doutrinariamente, contra o aborto”. Com relação à descriminalização do porte de drogas, em 2019, no Roda Viva, Dino disse ter “individualmente, uma atitude contra as drogas, de rejeição ao consumo”. Mas reconheceu a necessidade de uma política pública que busque eficiência e que substitua o modelo atual que encarcera e mata jovens das periferias.

Taxa de rejeição

Até passar a sabatina na CCJ e a votação no plenário do Senado, em que precisa de 41 votos, Dino terá de lançar mão de tudo que aprendeu na política. E é o que ele tem feito em sua corrida contra o escasso tempo até o dia 13. Dino sabe que do grupo bolsonarista, seu principal obstáculo no Senado, muito do ranço teve origem na forma como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) o via. Bolsonaro chegou a dizer, em 2019, que “daqueles governadores de ‘paraíba’, o pior é o do Maranhão”, referindo-se preconceituosamente aos nordestinos. O fato de ter pertencido ao PCdoB formou a avaliação do ex-presidente, que orientava seus ministros a não mandarem recursos para seus respectivos estados.

Outro ingrediente para a aversão o próprio Dino cultivou a cada ironia que pouco sutilmente despejou em repostas aos bolsonaristas nas várias audiências para as quais foi convocado na Câmara e no Senado. Sim, o comunista cristão soube usar a veia sarcástica em respostas que deixaram parlamentares constrangidos e ele sabe que quebrar esse clima ruim é muito difícil. Muita gente parava para assistir às transmissões da TV Câmara. O modo de se comunicar de Dino se adaptou muito bem à linguagem das redes sociais — os lances mais picantes viralizaram em pequenos vídeos. A animosidade vem também, evidentemente, a atuação do ministro no 8 de Janeiro. E se intensifica a cada notícia falsa contra Dino que aparece — a maioria sugerindo uma ligação íntima dele com o crime organizado.

Por isso, na quarta-feira, Dino procurou se mostrar como igual, como par. “Tenho uma trajetória profissional no campo jurídico e tenho uma relação muito próxima com o campo político, porque faço parte dele. Então, estar no Senado é uma alegria, uma honra. E é estar em casa.” Ele já vinha resistindo a comparecer às comissões no Senado dominadas pela oposição e negociou uma comissão-geral, um evento no plenário, para responder a todas as queixas. Agora, vai substituir essa comissão pela arguição na CCJ.

Conversar com Flávio Bolsonaro (PL-RJ), por exemplo, é uma das barreiras intransponíveis. Não para Dino, mas para o filho 01 do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ), que já avisou que não quer papo — e parece ter convencido o presidente do partido, Valdemar Costa Neto, a mudar de ideia também. O senador Sergio Moro (UB-PR) até aceitou recebê-lo, mas por “cortesia e educação”. O líder do PL, Carlos Portinho (RJ), também disse que o receberia, mas deu sinais de que não dá para esquecer o “deboche” contido nas falas de Dino. “Serei contra pela maneira debochada que ele tratou os parlamentares, a forma muito ideologizada que ele utiliza que não cabe em um STF”, disse ao Meio.

Descrente sobre a aprovação do nome, Portinho se esforça para difundir a ideia de que Lula indicou Dino para a vaga do STF com o objetivo de descredenciá-lo como político e não ter, em 2026, fora do PT, um nome forte para a disputa. “Não sei nem se isso aí não é uma armadilha para ele. Dino, por vaidade, está caindo”, insinuou. A propósito, Dino não está automaticamente fora da disputa presidencial, sejam em 2026 ou 2030, se for ministro do Supremo. Pode refazer a transição e voltar para a política tranquilamente, repetindo os passos de Epitácio Pessoa.

Portinho tenta arregimentar votos contrários a Dino e, em sua contabilidade, precisa convencer pelo menos uma dezena de colegas a votarem pela rejeição. Ele inclui em sua lista os 32 senadores que votaram a favor da candidatura derrotada de Rogério Marinho à presidência da Casa em fevereiro. Quando questionado se acha possível derrotá-lo, Portinho lembra a rejeição do nome de Igor Roberto Albuquerque Roque para a Defensoria Pública da União, ocorrida há um mês. “Aquilo foi um recado.”

Já a aposta do relator do processo de Dino, senador Weverton Rocha (PDT-MA), é de que ele terá de 50 a 55 votos pela aprovação. Conterrâneo de Dino, os dois já tiveram desentendimentos na última eleição, mas o relator garantiu que todas as rusgas estão sanadas. Ele também adiantou que seu parecer será pela aprovação, confessando-se mais como um cabo eleitoral de Dino no Senado do que como relator.

Se no meio da semana, Dino se colocava propositivo para “visitar todo mundo” e percorrer todos os gabinetes, na sexta-feira, precisou recorrer a um velho instrumento de convencimento eleitoral: uma carta, oficializando para todos os senadores seu compromisso de ser um ministro que vai agir de forma “técnica e imparcial” e informando que durante os 12 anos de magistratura manteve uma “postura condizente com a ética da legalidade”. Política pura.



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