Pobre Salman Rushdie: o escritor, que sempre defendeu a liberdade de expressão, perdeu um dos olhos depois do ataque que sofreu em Nova York, às mãos de um fanático. Mas ainda lhe restou o segundo para testemunhar, com horror, o ato de censura que uma editora do Ocidente operou nos livros de Roald Dahl (1916–1990).
"Censura", no contexto, é palavra branda. Aquilo é vandalismo cultural ao mais alto nível, digno do Talibã. Há frases inteiras que foram suprimidas e, ó beleza!, reescritas, só para não ofender a sensibilidade woke.
Tremo com o que o virá a seguir. Mas eu, se fosse o leitor, comprava uma passagem para Paris e visitava, sem mais demoras, a donzela pelada que Manet pintou em "Le Déjeuner sur l'Herbe". Se os dois homens que estão sentados com ela na grama estão bem abotoados, é uma questão de tempo até alguém pintar um vestido na senhora. Ou uma burca, talvez.
O caso de Roald Dahl é apenas o exemplo extremo de uma tendência que se foi aprofundando nos últimos tempos: a negação radical da autonomia da arte e a instrumentalização do artista para fins políticos ou ideológicos. Que esse artista esteja morto há mais de 30 anos só confere um tempero macabro ao abuso.
É por isso que o livro de Jed Perl, um dos mais brilhantes críticos de arte americanos, é mais necessário que nunca. O título é "Authority and Freedom: A Defense of the Arts". É o melhor ensaio que li em 2023.
A autonomia da arte, por um lado, e a sua instrumentalização para fins políticos, por outro, foram oscilando nos últimos 150 anos.
O primeiro quartel do século 20 apresentou-se como um território de experimentalismos vários, em que as inclinações políticas dos autores significavam muito pouco na avaliação das suas obras.
Como recorda Jed Perl, evocando a Greenwich Village de 1920, Kandinsky era um pintor revolucionário e Upton Sinclair era um escritor reacionário, independentemente das respectivas ideologias.
O mesmo poderia ser dito sobre os modernistas T.S. Eliot ou Ezra Pound, dois revolucionários da poesia que eram, para usar a fatal palavra, dois reacionários em política.
A Grande Depressão, a ascensão dos totalitarismos na Europa e a Segunda Guerra Mundial mudaram as regras do jogo: a arte passou a ser avaliada pela "causa" que apoiava, o que inevitavelmente levou à condenação de artes "degeneradas" ou "socialmente irresponsáveis" que não se submetessem à cartilha dos partidos. A revolução no mundo era mais importante que a revolução nas artes.
Depois da Segunda Guerra, e ainda segundo Perl, houve um alívio nessa obsessão programática. As peças de Beckett ou as esculturas de Giacometti marcavam um novo tempo onde a linguagem da arte procurava não se confundir com a linguagem da política, mesmo que as obras transportassem uma dimensão social ou filosófica importante e incontornável.
E hoje?
Hoje é o retorno aos momentos mais sombrios do século 20, com a submissão da arte a imperativos extra-artísticos.
É contra essa afronta que o ensaio de Jed Perl se insurge, lembrando o básico: o que define um escritor ou pintor ou compositor não é a "relevância" (grotesca palavra) da sua obra para as discussões histéricas das redes sociais.
A arte é, antes de tudo, a forma como um criador responde aos desafios da autoridade e da liberdade artísticas. É uma luta permanente, solitária, interior, entre ordem e impulso criativo: conhecendo a tradição da sua arte, até nas suas dimensões mais artesanais, um criador digno desse nome é aquele que prolonga ou refaz ou recria ou, no limite, recusa essa mesma tradição.
Esse bailado entre autoridade e liberdade não é um exclusivo de gênios como Rembrandt, Whitman ou Mozart. O mais humilde escritor, o mais humilde pintor, o mais humilde compositor não consegue escapar a este desafio: o domínio de uma linguagem artística que é sempre o domínio de um universo particular.
Na primorosa definição de Jed Perl, todas as representações de "Rei Lear" são uma exploração das possibilidades de "Rei Lear".
Quando esse confronto entre autoridade e liberdade não existe, também não existe uma obra de arte. Temos apenas obras "bem feitas", no sentido técnico ou académico da expressão: obras que se limitam a mimetizar a autoridade de um género, sem que a liberdade e a individualidade do artista se revelem.
Ou, em alternativa, quando só existe liberdade sem autoridade, temos obras informes e estéreis, porque a ausência de limites, ou até do conhecimento prévio desses limites, fez naufragar o criador em ruído e nada.
A essas duas modalidades, acrescento mais uma, em homenagem ao nosso tempo: a conversão da obra em panfleto, ou seja, a recusa trágica quer da autoridade, quer da liberdade.
Numa das melhores passagens do ensaio, Jed Perl relembra uma carta de Flannery O’Coonor em que a escritora, apesar de ser católica, criticava um romance declaradamente católico:
"[O livro] é apenas propaganda e ser propaganda para o lado dos anjos só piora as coisas. O romance é uma forma de arte e, quando você o usa para qualquer coisa além da arte, você o perverte".
E a sentença final, tão válida hoje como em 1956:
"A arte está totalmente preocupada com o material de que é feita; ela não tem um fim utilitário. Se você consegue usá-la com sucesso para fins sociais, religiosos ou outros, é porque você fez arte primeiro".
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