Andei pensando: serei mais Kant ou mais Bentham? Serei mais deontologista ou mais consequencialista? A culpa dessas perguntas angustiantes é de Álvaro Machado Dias e Hélio Schwartsman, que conceberam um estudo notável sobre a ética dos brasileiros.
Se eu fosse brasileiro, teria sérias probabilidades de ser deontologista. Aliás, mais que a média: é entre os 41 e os 50 anos, purgatório em que me encontro, que o pessoal se revela fã dos "princípios". Como explicar?
Crise da meia-idade, suspeito. Quando chegamos a essa fase, somos como náufragos, procurando certezas no meio da tempestade.
Ou talvez não. Se fosse confrontado com as perguntas de Dias e Schwartsman, o mais provável seria responder com novas perguntas. Não posso ser ambos? E, já agora, não posso incluir, por especial favor, alguma ética da virtude?
A primeira pergunta é fruto da experiência. A ideia de que somos eticamente consistentes, aderindo e cumprindo uma só teoria, não sobrevive a uma vida examinada.
Sou kantiano e utilitarista consoante as circunstâncias: às vezes os princípios, às vezes as consequências. E, consoante as circunstâncias, abandono Kant e os utilitaristas por discordar de ambos.
Agir segundo uma máxima que eu desejaria que se tornasse universal (o imperativo categórico de Kant) é fascinante à primeira vista. Poupa trabalho, sobretudo perante as agonias da vida.
Mas depois...
Sim, depois as agonias não desaparecem. Acontece quando somos confrontados com dois deveres igualmente universalizáveis (e igualmente inescapáveis) e somos obrigados a escolher um.
Kant não ajuda. Aliás, nada ajuda: é esse o significado de incomensurabilidade. Não existe uma fórmula que possa resolver, a priori, a paralisia em que mergulhamos. Devo sempre dizer a verdade? Mesmo que dizer a verdade provoque a morte de inocentes?
Nunca fui confrontado com tragédias desse tipo. Mas, na vida comum, acredito cada vez mais na nobreza da mentira piedosa.
Com os utilitaristas só vou até certo ponto. A ideia de que a maximização da felicidade para o maior número deve presidir as nossas escolhas morais implica saber primeiro o que traz felicidade para o maior número.
A perseguição de minorias?
A aplicação da pena de morte?
A amputação de membros para criminosos?
Uma sociedade decente pode exigir a infelicidade do maior número. Cada vez mais acredito nisso: como mostrou Freud há cem anos, a civilização constrói-se sobre alicerces de descontentamento.
Se abandono Kant e os utilitaristas com a mesma facilidade com que os abraço, confesso minha simpatia crescente com a ética da virtude. Os autores do estudo não incluíram essa terceira via, talvez porque ela seja mais sutil nas discussões filosóficas.
Por outras palavras: a ética da virtude só atrapalha a sociedade "prêt-a-porter" em que vivemos. Seguir princípios ou pensar nas consequências tem bom marketing.
O caráter não tem –e é de caráter que a ética da virtude nos fala. É conversa antiga, que vem de Aristóteles, e que conheceu uma ressurreição espantosa no século 20 com Elizabeth Anscombe. O que é o caráter?
É o resultado de viver de uma determinada forma. Você quer ser justo? Então pratique a justiça. Quer ser corajoso? Então pratique a coragem. Todos os dias, nas pequenas e grandes coisas, como se fosse um atleta treinando os seus músculos.
A possibilidade de escolhas justas, de escolhas corajosas, de escolhas sábias, aumenta drasticamente quando o seu caráter foi esculpido por tais virtudes.
Falei em Aristóteles, falei em Anscombe –mas Clint Eastwood também serve. Dias atrás, assistindo pela milésima vez ao seu "Menina de Ouro", encontrei um dos tratados mais brilhantes sobre a ética da virtude.
Pergunta acadêmica: a eutanásia é legítima?
Os kantianos darão uma resposta, os utilitaristas outra. Mas o personagem de Clint Eastwood, o técnico de boxe Frankie Dunn, oferece uma resposta que confunde ambos.
Por um lado, viola a injunção kantiana (e bíblica) do "não matarás".
Por outro, só por piada vemos em Frankie a encarnação da felicidade final. Pelo contrário: como um condenado eterno, ele desaparece da paisagem comum.
Porém o seu gesto só pode ser entendido à luz de um caráter. É um gesto terrível e profundo, pleno de amor e coragem, que não se encontra em nenhum manual de filosofia, em nenhum "cálculo hedônico".
É uma decisão de vida que só pode ser explicada, e justificada, pela vida daquele homem.
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