Senhores, lamento decepcioná-los mas, diante das circunstâncias, sou obrigado a informá-los que, a despeito da expectativa geral, 2020 não se encerra hoje. Nem acabará tão cedo.
Há indícios no calendário de que certo ciclo astronômico findaria hoje, mas é mera convenção para orientar balanços de empresas, planos plurianuais de governos e cobradores ávidos por nos encurralar.
Em outro universo, o mesmo ciclo poderia iniciar-se, com mais propriedade, em algum dos solstícios, e não em um ponto qualquer do inverno ou do verão.
Sabemos também que a ilusão do fim do ano é igualmente produto da angústia humana em crer que os fracassos foram temporários, e daqui pra frente tudo vai ser diferente: a dieta de dois meses para perder dez quilos nos fará perder dez quilos, e não, como suspeitamos, apenas dois meses de vida; o trabalho massacrante vai nos absorver menos e nos dar mais tempo para as pessoas queridas, as quais, porém, estarão soterradas demais no próprio trabalho massacrante para nos dar atenção; a ressaca do Réveillon alguma hora vai passar, dando finalmente lugar à nova bebedeira e outra ressaca que alguma hora vai passar; aquela garota do escritório que passou o ano nos evitando vai finalmente dar mole —e a gente também, na hora agá.
Mas algo não depende de convenções nem de boas intenções: é a realidade nua e crua, que ignora desejos e impõe a crueza dos fatos. E 2020 não conseguiu concluir praticamente nenhuma das mazelas terríveis que protagonizou.
Conversando com um amigo inglês, ele me dizia que o pesadelo estava de volta a Londres: confinamento, restaurantes fechados, nova cepa de vírus no ar. Contei-lhe que também aqui caminhávamos para algo semelhante.
Constatamos que os mais importantes recordistas de mortes eram nossos países, junto com Estados Unidos. Todos com uma causa clara, a imbecilidade criminosa do governante. (O britânico, depois de uma temporadinha básica na UTI, tentou redimir-se, mas tarde demais.)
Ninguém avisou ao vírus que hoje é dia 31? Que amanhã é o novo dia de uma nova era? Que basta?
Mais realista que as vãs esperanças de bilhões, a Covid-19 não parece se importar com o calendário. E tudo indica que vai escorrendo como uma serpente sorrateira, atravessando impávida a passagem da década e inaugurando o pretenso novo ano com seu rastro de terror, liderando o cortejo de cúmplices.
O mundo enfrenta um colapso humano inédito nos últimos cem anos. E, se alguém espera que tudo mude num piscar da folhinha, melhor saber que as estranhas convenções de 2020 —distanciamento dos semelhantes, confinamentos, máscaras, álcool em gel, desemprego— ficarão por aí por um bom tempo, mesmo com as prometidas vacinas.
O ano de 2020 seguirá, impávido, pelo menos por um bom número de meses. Mas não é só nisso que o ano terrível buscará se eternizar enquanto dure de fato.
É verdade que o mundo escanteou um monstro chamado Donald Trump —mas a máquina de guerra americana, tão cara ao Partido Democrata, continua azeitada.
Verdade que vimos no Chile um progresso importante do movimento popular a favor dos direitos civis; mas, em outras partes em que a população foi à rua, a pandemia jogou contra a democracia, como em Hong Kong e na França.
Enquanto isso, no Brasil, o interminável 2020 parece fadado a durar pelo menos mais dois anos.
É verdade que o neofascista Bolsonaro e seus esbirros que concorreram às prefeituras brasileiras foram humilhados nas urnas. Mas não há sinais (antes pelo contrário) de que se tenha arrefecido a destruição e desmonte da ciência, da educação, das artes, da natureza, dos direitos trabalhistas e dos direitos humanos promovido por Bolsonaro e sua coorte de milicianos, ignorantes, fanáticos e filhos (vários se enquadram em todas as categorias).
Pelo contrário, este governo nefasto continua corroendo por dentro as instituições —o que nos países neoditatoriais mundo afora tem funcionado para manter autocratas no poder.
Não quero ser tão pessimista. Quem sabe restem solidariedade, higiene, aversão à tirania. E, sim, 2020 alguma hora vai acabar. Nem que demore anos.
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