sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

O que eleições têm a ver com desmatamento? Patricia Ruggiero, Nexo Políticas Públicas

 

O que eleições têm a ver com desmatamento?

Patricia Ruggiero
Estudo do Departamento de Ecologia da USP mostra que corte de florestas em municípios da Mata Atlântica foi maior em anos eleitorais. Mecanismos que ligam eventos são objetos de investigação

O avanço do desmatamento de florestas no Brasil e no mundo sempre foi associado a múltiplos fatores, principalmente econômicos, que, mesmo remotamente, afetam o aumento da extração de madeira, a expansão de fronteiras agrícolas e o crescimento da infraestrutura urbana e de transportes em áreas de florestas 1.

Evidentemente, a implementação de políticas relacionadas ao uso da terra e ao incentivo ou combate ao desmatamento podem influenciar diretamente a manutenção ou a supressão da vegetação nativa. No entanto, um fator que se mostra de extrema relevância foi deixado de lado pelos pesquisadores durante praticamente meio século de estudos.

Distante destes estudos sobre desmatamento, em uma área da ciência denominada economia política, pesquisadores debatem há várias décadas como políticos respondem aos estímulos que são criados pelos ciclos eleitorais nos países democráticos.

Quase sempre, ser eleito ou eleita é uma condição necessária na democracia para assumir o comando da gestão pública. Políticos precisam ganhar apoios diversos que possam se transformar em votos no dia da eleição e, nesse dia, o eleitor se recorda mais vivamente do que aconteceu recentemente e tende a se esquecer dos eventos mais distantes no tempo.

O amadurecimento dos processos democráticos e a oferta de dados acessíveis que tornam o eleitor mais informado são fatores que podem coibir esses comportamentos oportunistas e diminuir a amplitude desses ciclos eleitorais

Essa dinâmica cria um movimento cíclico no qual as medidas mais impopulares são adotadas no início dos mandatos, enquanto medidas que agradam tendem a aumentar conforme as eleições se aproximam, especialmente quando o gestor em ofício tenta a reeleição 2 . Há fartas evidências na literatura de que instrumentos de política econômica e social, como a política fiscal do governo, são intensamente manipulados em resposta aos estímulos criados nesses ciclos eleitorais 2 4.

Ao acessarmos uma base nacional de dados sobre uso da terra – o Projeto Mapbiomas 5, que mapeia a cobertura do solo em uma série temporal inédita de mais de 30 anos –, desconfiamos de um padrão cíclico de desmatamento e passamos a investigar 2.277 municípios da Mata Atlântica entre 1991 e 2014. Será que anos de eleição e desmatamento podem estar relacionados?

A resposta é sim. Observamos a existência de ciclos eleitorais de desmatamento na Mata Atlântica brasileira 6, apesar de esse bioma ter uma das legislações florestais mais rigorosas do mundo e governança florestal bem estruturada (isto é, órgãos e instrumentos de governo que decidem, monitoram e agem sobre o uso das florestas nos estados).

Os anos de eleições federais-estaduais e municipais mostraram um aumento significativo da perda de florestas, particularmente maior entre os municípios que estavam sob média ou grande pressão de desmatamento. Alguns desses locais chegaram a perder 0,25% a mais da sua área de floresta em anos de eleições federais-estaduais quando comparados com anos não eleitorais. Nos anos de eleições municipais, as proporções de florestas perdidas por município foram menores.

Os dados observados em hectares tampouco nos permitem ignorar eventos eleitorais municipais. Em hectares, entre 1991 e 2014, a região da Mata Atlântica sofreu maiores perdas de florestas durante eleições municipais: em média 4.438 hectares a mais de florestas perdidas, contra 3.605 hectares em ano de eleição federal-estadual. Seja em valores absolutos ou em frações remanescentes de vegetação, a cada dois anos, quando ocorreram eleições, a Mata Atlântica testemunhou uma perda significativa adicional de suas florestas.

Olhando para esse efeito, evidenciamos um fenômeno ainda mais novo: o alinhamento político entre diferentes níveis de governo intensifica a perda de florestas durante as eleições. Nesse caso, quando o partido que concorre à reeleição no plano estadual pertence à coligação que concorre à reeleição no plano federal, e quando o partido que concorre à reeleição no município pertence ao mesmo partido do governador do estado, o efeito das eleições sobre o desmatamento se acentua.

A ligação entre desmatamento e ciclos eleitorais também foi demonstrada na Indonésia, onde gestores locais permitiram mais desmatamento nos momentos que antecederam as eleições 7, e recentemente na Amazônia, onde o desmatamento subiu entre 8% e 10% nos municípios nos quais o prefeito concorreu à reeleição entre os anos de 2000 e 2012 8. Vale ressaltar que Indonésia e Brasil são os dois países que mais contribuíram para as emissões de CO2 provenientes de desmatamento, tendo sido responsáveis pela liberação de 55% do carbono proveniente das florestas tropicais entre 2000 e 2005 9.

Estamos reunindo claras evidências da relação entre ciclos eleitorais e desmatamento, mas os mecanismos que ligam esses dois eventos ainda são objeto de investigação. Algumas das hipóteses que podemos levantar para a relação incluem aumento de crédito em anos eleitorais para setores que desmatam, aumento de licenças para desmatamento, redução da fiscalização ou até mesmo a alteração da percepção, por parte de quem desmata, sobre a possibilidade de ser punido em época de eleições.

A boa notícia é que este fenômeno não é homogêneo ao longo do tempo, e eleições no passado causaram mais desmatamento do que eleições mais recentes. O amadurecimento dos processos democráticos e a oferta de dados acessíveis que tornam o eleitor mais informado são fatores que podem coibir esses comportamentos oportunistas e diminuir a amplitude desses ciclos eleitorais 3.

Mas vale lembrar que o período observado em nosso estudo considerou os ciclos eleitorais até 2014, e não sabemos quais são os resultados após essa data. Não há garantia de que a democracia caminhe sempre na mesma direção: pode haver idas e voltas. Retrocessos institucionais e nas vias democráticas seguramente podem alterar esse cenário e ampliar o efeito dos ciclos de eleições sobre as florestas. Como escreveu Carlos Drummond de Andrade, “uma eleição é feita para corrigir o erro da eleição anterior, mesmo que o agrave” 10.

Se, por um lado, existe um grande esforço e evidentes limitações para a implementação bem-sucedida de novos mecanismos de conservação das áreas de florestas, por outro lado é preocupante que esses ganhos possam ser anulados por perdas decorrentes de processos eleitorais, mesmo na vigência de uma das legislações mais rígidas sobre florestas tropicais do mundo. No fim das contas, não podemos esquecer o impacto que decisões políticas podem ter sobre os recursos naturais. Em ano de eleição, temos que abrir ainda mais os olhos.

BIBLIOGRAFIA

H. J. Geist, E. F. Lambin, Proximate Causes and Underlying Driving Forces of Tropical Deforestation. Bioscience. 52, 143–150 (2002).

W. D. Nordhaus, The political business cycle. Rev. Econ. Stud. 42, 169–190 (1975).

Patricia Ruggiero é bióloga, mestre e doutora em ecologia pelo Departamento de Ecologia da Universidade de São Paulo (IB/USP). Tem especialização em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e foi pesquisadora visitante na Sanford School of Public Policy da Duke University, EUA. Entre o mestrado e o doutorado, trabalhou 14 anos na área ambiental, nos setores privado, governamental e no terceiro setor. Atualmente, é pesquisadora pós-doutoranda no Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (FEA/USP) investigando o efeito de políticas públicas e dos ciclos eleitorais sobre a vegetação nativa brasileira.

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