Dagmar Zibas
Longevas senhorinhas de hoje, que foram adolescentes de classe média nos anos 1940 e 1950, sabem que o sonho daquelas moçoilas era o diploma de professora normalista para exercerem, em escolas públicas, a então valorizada profissão, uma das poucas disponíveis às filhas de “boas” famílias. Entretanto, as netas das atuais oitentonas estão focadas em outras carreiras, de melhor remuneração e, portanto, de maior status.
É nesse cenário que o sonho de Edilene se constrói. Conheci essa mulher extraordinária numa tarde de domingo, no pátio de um restaurante em São Paulo. Estava concentrada na tela do celular, tendo ao lado a mochila do iFood e a bicicleta. Receptiva à minha curiosidade, foi logo contando como concilia dez horas diárias de trabalho, em que pedala para entregar comida, com os encargos de mãe e com um curso online de pedagogia.
Não, não se sente explorada por lhe faltar a “carteira assinada”. Importante, diz ela, é que o ganho atual é bem maior do que seu salário anterior. Flexibilidade de horário e não ter ninguém "enchendo a paciência” também são vantagens. Ou seja, o “aqui e agora” é premente, e a maior renda empalidece a insegurança e a dureza do trabalho precarizado. No entanto, há um projeto de futuro: terminar pedagogia e fazer complementação em educação especial.
Edilene expressa bem o porquê desse objetivo: “Fui cuidadora em escola, e vi professoras destratando crianças (com necessidades) especiais. Peguei amor, e vou ensinar com muito amor”. O curso, de preço acessível, oferece biblioteca virtual, mas não é necessário recorrer a livros porque “os vídeos são suficientes para passar nas provas”.
O malabarismo diário exige estratégias complicadas para manter o equilíbrio. Preparar o almoço e o jantar dos dois filhos, que ficarão sós em casa, é a primeira tarefa de todos os dias. A bicicleta é alugada na região da avenida Paulista por R$ 300 mensais, e as duas horas de transporte público são dedicadas às aulas online.
O salário da futura professora possivelmente será menor do que a renda da entregadora, que é, em média, de R$ 800 por semana. Então, por que a opção pelo curso? O senso comum diria que o menor ganho tem, em contrapartida, o maior status social e a estabilidade do magistério. Mas Edilene é enfática: quer ser professora apenas por amor às crianças maltratadas.
Tal afirmação remeteu-me a pesquisas na área da educação, que, nos anos 1980 e 1990, registravam frequentes declarações de professoras com o mesmo teor: para a realização da aprendizagem, sua relação com os alunos deveria ser de muito carinho.
Os dados desses estudos geraram intensa polêmica. Para alguns especialistas, os cursos de magistério não estavam preparando as estudantes para o exercício competente da profissão, daí o apelo a um sentimentalismo inútil. Outros estudiosos afirmavam que a característica feminina, culturalmente construída, de cuidado com as crianças, complementaria com sucesso a competência técnica exigida.
Participante daqueles debates e me deparando agora com a história da valente Edilene, registro, com desalento, que a competência do magistério jamais será garantida por aligeirados cursos a distância, procurados por mulheres inteligentes, fortes e afetuosas como minha interlocutora, mas que não dispõem de tempo e, principalmente, de apoio acadêmico efetivo para a formação complexa que a carreira exige.
Tal apoio deveria incluir ampla inserção cultural para compensar as lacunas que, em vista da origem de classe, provavelmente marcam a sofrida trajetória dessas estudantes.
Em Edilene, justapõem-se duas das iniquidades da atual cena brasileira: de um lado, a naturalização do trabalho precário, excluído de garantias trabalhistas básicas; de outro, a inépcia a que pode estar sujeita a formação para o magistério, profissão aviltada em sua base salarial —e, portanto, em progressiva desvalorização social.
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