terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Guilherme Boulos Doria estadista?, FSP

 

A aprovação das vacinas pela Anvisa foi uma vitória da ciência contra o atraso. Vitória coletiva das instituições públicas de pesquisa, representadas pelo Butantan e pela Fiocruz. Vitória do SUS, representado por 12 mil profissionais de saúde que participaram dos testes.

É verdade que tivemos um início tardio. A enfermeira Monica recebeu sua dose quando 35 milhões de pessoas já estavam imunizadas em 57 países. Numa situação única no mundo, o governo foi o principal adversário da vacinação. Bolsonaro se associou ao vírus em campanha pela morte. A única vacina contra o mal que ele causa é o impeachment. Foi tão longe que permitiu a João Doria vender uma imagem de governante sensato, quase um estadista.

A enfermeira Monica Calazans, primeira brasileira a ser vacinada pela Coronavac, no HC, em São Paulo - Eduardo Anizelli/Folhapress

Nunca tive problemas para reconhecer méritos em adversários políticos. Doria teve um papel importante na defesa da vacina, em contraponto ao negacionismo. Mas uma sociedade sem memória perde seus pontos de referência. Nunca é demais lembrar o verão passado. Aliás nem precisamos ir tão longe. Há três meses, em plena pandemia, ele propôs cortar 30% do orçamento da Fapesp, principal órgão estadual de fomento à pesquisa científica. Pouco antes, no PL 529, propôs o confisco do fundo de reserva das universidades públicas. Defesa da ciência?

O Doria que, no domingo, fez discurso emocionado em defesa da vida é o mesmo que na campanha de 2018 disse que "a polícia vai atirar para matar" e que, já como governador, parabenizou policiais por uma ação com 11 mortos em Guararema. O mesmo que vetou leis que previam uma política de combate à tortura e o funcionamento 24h das delegacias da mulher. Defesa da vida?

Se recuperarmos sua atuação na prefeitura, podemos lembrar da farinata, composto de alimentos próximos ao prazo de validade que ele quis distribuir na merenda escolar. Na época, Doria chamou a ração de "produto abençoado". Foi ainda na sua gestão que houve a acusação de que agentes municipais jogaram jatos de água em moradores de rua. Os mesmos sem-teto que ficaram à própria sorte em toda pandemia e não estão incluídos nas primeiras etapas do cronograma de vacinação estadual, apesar da completa vulnerabilidade ao vírus por não poderem "ficar em casa". Infelizmente, não existe vacina contra a desumanidade.

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Estamos todos aliviados com o início da vacinação, e não estou entre aqueles que acham que devemos escolher quem pode ou não estar junto na luta contra Bolsonaro. Mas reconhecer a curvatura da Terra não basta para tornar alguém um estadista nem apaga sua história. É essa miséria de perspectivas que nos ajudou a chegar até aqui. O Brasil pode muito mais.

Guilherme Boulos

Professor, militante do MTST e do PSOL. Foi candidato à Presidência da República e à Prefeitura de São Paulo.

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