A história da ciência é historia de céticos. Desde os cueiros, a ciência moderna apanha dos descrentes. O temor dos efeitos indesejados das boas intenções científicas comparece desde a literatura oitocentista, vide o doutor Victor Frankenstein, até o cinema catástrofe contemporâneo. Hollywood é pródiga na desova de gênios desalmados manipulando frascos diabólicos. É desconfiança velha, que alimentou a moda antivacina dos naturebas de esquerda, antes de florescer à direita, com os negacionistas nossos de cada dia.
Esse ceticismo atrasou o combate a doenças controláveis pelo gesto simples de lavar as mãos, conta Céline, um insuspeito para direitistas. Sua tese de doutorado em medicina ("Vida e Obra de Semmelweis") narra descoberta singela de um colega seu de ofício. Em 1846, Ignac Fulop Semmelweis testou e confirmou: quando médicos lavavam as mãos, após saírem do necrotério, morriam menos mulheres nos partos que realizavam a seguir. A profilaxia salvava.
Apesar dos resultados sólidos, foi ridicularizado. Perdeu a batalha da persuasão e o emprego. Mas venceu a guerra de longo prazo.
Seu achado, como tantos adiante, firmou-se porque se baseava em evidências. A ciência se ancora em conjunto rigoroso de princípios, regras, métodos, que baliza pesquisas e experimentos. Ao contrário dos delírios cloroquinistas, ozonistas, vermifugistas, não basta que um doutor individualmente acredite na eficácia de dado tratamento. A comunidade cientifica inteira funciona como uma grande equipe de checagem, com repetição, verificação, crítica, correção, num moto contínuo. Mesmo os trabalhos dos figurões são avaliados por pares. E a comunidade é global, não está a serviço de nenhum governo.
Há loucos e inescrupulosos nas ciências, como em toda atividade humana —veja-se a política—, mas no campo científico há um sistema de autocontrole. Assim, quando os cientistas dizem que há vacina eficaz e segura contra o coronavírus, não o fazem ancorados apenas em seu próprio experimento, mas em protocolos internacionais de como proceder, testar e validar conhecimento.
Para ser bem-sucedida, a vacinação depende da participação massiva dos não cientistas. Os movimentos anticiência dos últimos anos semearam descrença e ressuscitaram doenças tidas por erradicadas, como o sarampo.
Negacionismo que grassa inclusive entre os muito escolarizados. Mesmo se a vacinação for obrigatória, haverá quem falte para ir à praia, como muitos fazem nas eleições. Persuadir esses cidadãos a aderir é decisivo para a sociedade inteira.
A responsabilidade maior é dos governantes. Aí está o exemplo de Biden, vacinado em público. Todos os governadores, todos os prefeitos precisam dar o exemplo, sobretudo nessa insólita semivacância da Presidência. Em par com a irresponsabilidade do ocupante da cadeira número um da República, um sabotador do conhecimento que salvaria vidas, estão as autoridades que querem burlar a fila de inoculação e até médicos —os da linhagem dos adversários de Semmelweis.
A maioria dos cientistas, contudo, segue os passos de Semmelweis, Pasteur, Oswaldo Cruz. E se orgulha dos colegas e das colegas, das ciências naturais e sociais, do Butantã e da Fiocruz (presidida por uma mulher, não custa lembrar), que vem pesquisando contra o relógio da pandemia.
Mas não há ciência que dê jeito sem o esforço coletivo de usar máscaras, tomar vacina e lavar as mãos. Que a história puna os que as lavarem de modo figurado.
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