28.jan.2021 (quinta-feira) - 6h00
Hoje vou falar do maior desperdício já engendrado pelo ser humano: a renúncia ao poder de fazer a diferença. Estamos todos, em menor ou maior grau, aceitando uma transmutação que nos leva de seres pensantes a torcedores de luta livre, abrindo mão das convicções para virar animador de torcida que vibra com um e joga ovos no outro sem ganhar nada com isso, oferecendo reação pre-determinada sem que ninguém precise mandar.
Enquanto participamos alegremente da farsa da nossa suposta relevância, emitindo uma voz indistinguível em meio ao coro ensaiado, estamos jogando fora o poder mais extraordinário que a internet já nos proporcionou, e ao qual nunca antes tivemos acesso. Pensem comigo: Nunca antes tanta gente teve voz. Em nenhum outro momento da história a opinião do vendedor da esquina conseguiu estar diariamente na mesma página de um grande editorialista. Até recentemente, um pobre sem amigos influentes não podia nem imaginar que sua ideia seria lida por um deputado. Pela primeira vez temos a possibilidade –impensável há apenas duas décadas– de atingir e influenciar diretamente os políticos que nos governam, e influenciar também a sociedade que pressiona esses políticos. E pela primeira vez não precisamos esperar quatro anos para ter nossas vozes ouvidas, e nosso repúdio levado em consideração.
Mas essa força sem precedentes, essa pressão em tempo real, está sendo jogada no lixo. Em meio a tanto barulho, paixão e bile, estamos lentamente decretando o fim da crítica pertinente, a morte do feedback honesto, e a irrelevância da opinião individual e do seu peso coletivo. E o grande culpado por tudo isso, ou um dos principais culpados, é o que as mentes mais simplórias confundem com lealdade. Deixa eu já cantar a bola aqui antes de continuar: quem tem lealdade por político, ou foi comprado, ou ganhou emprego, ou é um otário. Se você está sendo governado por alguém, sujeito às leis e obrigações de um lugar onde toda dor é ou deveria ser sua também, o mínimo que lhe cabe, como direito e dever, é apoiar o correto, e condenar o errado.
Qualquer coisa além e aquém disso é indigna de ser praticada por um ser humano. Lealdade a gente tem pela família, e praticamente apenas por imposição biológica. Qualquer outra instância em que a convicção pessoal é suplantada por um sentimento de débito moral deve ser examinada a fundo, psicológica e filosoficamente, e com toda a honestidade intelectual do mundo. Só existe uma dívida intelectual digna de ser contraída e paga –a dívida com nossa própria consciência.
Faço esse preâmbulo enorme porque ontem aconteceu algo muito ilustrativo, e infelizmente nada raro. Eu enviei uma mensagem a um grupo cuja maioria votou em Bolsonaro. Era uma notícia falando que o governo liberou um incentivo fiscal de 10 milhões de reais para os pilotos Pietro Fittipaldi e Tony Kanaan. Tento evitar provocação e brigas (ainda que discussões políticas jamais devessem levar a isso), mas nesse caso fiz questão de saber a opinião dos membros do grupo porque ali tem gente que passou anos criticando a Lei Rouanet, e a maneira como ela vem permitindo que impostos sejam transferidos dos mais necessitados para os que menos precisam. Eu concordava e ainda concordo com as críticas a essa lei. Governar é eleger prioridades, e show de cantor famoso não é uma delas.
Fiquei genuinamente curiosa em saber qual seria o sentimento sincero de quem passou anos lutando contra aquela iniquidade e agora a via cometida pelo político em quem confiou. Mas confrontado com a notícia de que em meio a uma crise avassaladora o governo permitiu aquela transferência de imposto para alguém que não está morrendo de fome, meu amigo reagiu da forma mais decepcionante –e esperada– do mundo. Ele se recusou a explicar o que sentia, nem contou como justificaria ou condenaria aquilo. Ele simplesmente jogou uma pergunta de volta pra mim: “E o STF, e o Congresso?”
Eu não estou acima de tal falácia argumentativa. Cansei de receber o velho gif “E o Lula? E o PT?” nas vezes em que eu usava o governo do PT como contraponto a alguma crítica a outros governos. (Nesse gif, brilhante em sua síntese, um Homem Aranha ataca outro Homem Aranha, e estão portanto os dois igualmente certos e errados.) Às vezes usamos esse relativismo para realçar a hipocrisia de quem agora critica o que antes apoiou. Mas meu amigo do zap sabe que eu sempre fui contra esse tipo de transferência de recursos. Sou bloqueada pelo Lobão porque um dia tuitei pra ele uma foto de um poster que eu vi num ônibus, anunciando um show dele patrocinado pelos Correios bem na época em que Lobão descia o cacete na Lei Rouanet. Não conheço muito o trabalho dele, mas admiro o fato de ele ter tido a honestidade intelectual de recomendar artigo meu tempos depois (brigada, Lobão), e só por isso (mais a personalidade e a língua solta) eu convidaria o cara pra uma cerveja. Digressão.
O que interessa aqui é o seguinte: meu amigo, eleitor do Bolsonaro e membro ativo do grupo de apoio informal ao presidente, abriu mão da chance de ser realmente relevante, de se apoderar da sua condição de apoiador sincero e fazer o presidente mudar de ideia e rever uma decisão equivocada. Em vez disso, meu amigo optou por ser um cheerleader, sacudindo pompom com os braços e mantendo um sorriso mesmo quando discorda. Isso não é lealdade. Isso é um tipo de traição a si mesmo. O meu amigo não sabe, mas ele não é o único que perde com essa subserviência –perde também o Bolsonaro, porque se tem uma coisa que destrói qualquer um no poder é a falta de crítica honesta vinda de pessoa bem-intencionada.
Bolsonaro e Lula sempre receberam críticas –mas só daqueles que já os criticavam mesmo quando eles faziam algo correto. Tanto Lula quanto Bolsonaro foram ou estão sendo destruídos pela ausência do feedback honesto e descomprometido. Uma reprimenda de Jean Wyllys a Bolsonaro não vai ter nenhum efeito negativo, ao contrário –deve ter até efeito positivo, convencendo os de mente menos brilhante de que estão no rumo certo. O mesmo acontecia com o Lula –a crítica dos anti-PT não vale muito, porque elas independem da ação em si. Mas o país nunca vai melhorar enquanto não tivermos a honestidade intelectual de criticar o errado, e acima de tudo, apoiar o certo. Vejam que quem mais “mente” em suas reações, sempre em conformidade com o grupo monobloco do qual faz parte, é exatamente quem não depende das leis para comer, colocar os filhos na escola e pegar transporte público.
O povo mesmo –aquele que se beneficia e se ferra a cada vez que o governo acerta e erra– esse muda de opinião a cada decisão, porque ele sofre as consequências de cada uma delas. O que estamos fazendo –não só contra o país, mas contra as pessoas que precisam da política para viver e comer– é corromper a lei mais verdadeira e eficiente já criada pela natureza: a Terceira Lei de Newton, também conhecida como a lei da ação e reação. Ao inventar uma reação falsa, estamos estimulando futuras ações incorretas. Em outras palavras, diante do silêncio dos seus apoiadores sobre o incentivo fiscal ao Fittipaldi, Bolsonaro está recebendo uma única mensagem: você está no caminho certo.
Por tudo isso que falei, a qualidade mais essencial que conheço é a honestidade intelectual, muito mais do que o próprio intelecto, ou do que a mera coragem. Nada supera a bravura de alguém que defende uma ideia que lhe desagrada, ou que refuta uma teoria que o favorece. Nada supera a independência intelectual de quem se nega e corrige, e se admite errado. Por isso vou terminar esse artigo falando de Janaína Paschoal, uma pessoa com cujas ideias nem sempre compartilho, mas cuja honestidade intelectual admiro há tempo . No dia 17 de dezembro minha coluna fazia críticas a uma ideia absurda de Janaína, que sugeriu que transferíssemos o poder de decisão da Anvisa para a FDA americana sobre a aprovação das vacinas (critiquei também o senador Randolfe Rodrigues, que pulou naquele trem descarrilhado).
Fui rude e imprópria nas minhas referências à Janaína, e usei palavras que jamais teria usado num debate público em que ela estivesse presente –aí já por acaso um sinal da minha falta de bravura, e covardia intelectual. Mas Janaína provou que tem uma coragem que supera eventuais erros, porque coragem é exatamente a qualidade que permite a alguém corrigir esses mesmos erros e voltar atrás. Em sua página no Facebook, a deputada tomou a iniciativa de postar meu artigo, e recomendou que ele fosse lido para que o debate fosse aprimorado (escrevo sem aspas porque não tenho Facebook e vi isso há um tempo).
Fico aqui então com um pedido público de desculpas à Janaína Paschoal pela minha grosseria, que não foi apenas deselegante mas acima de tudo foi extremamente burra, porque o que quero é que encontremos um consenso em torno das coisas corretas e do que for melhor pra esse nosso país – tão lindo, tão rico, e tão injusto e sofrido. Ofensa pessoal não ajuda na confluência de ideias, ao contrário – ela assusta e afasta antes de ter a chance de convencer. Ainda bem que Janaína Paschoal tem coragem, porque naquele dia, pra minha vergonha (e admiração) ela aceitou o erro, ou ao menos aceitou ser contradita pelos seus seguidores, e deu a eles a chance de duvidar dela. São essas pessoas que eu quero valorizar – não as que nunca erram, mas as que nunca se acovardam em face ao erro. Obrigada e parabéns, Janaína, por qualidade tão crucial, e cada vez mais rara.
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