Fernando Reinach*, O Estado de S.Paulo
14 de janeiro de 2021 | 05h00
Preciso começar pedindo desculpa aos meus leitores. Semana passada comprei gato por lebre ao dar crédito ao anúncio emocional do vendedor de ilusões que preside o Instituto Butantã. Acreditei, sem examinar os dados, que a eficácia da Coronavac era 78%. Quem escreve sobre ciência não pode sofrer relapsos do tipo. Mas como imaginar que Dimas Covas, após meses de sucessivos adiamentos do anúncio da eficácia, iria, ao lado do governador e de diversos cientistas, divulgar, emocionado, como eficácia um “recorte” dos resultados? Mas essa semana eu estava preparado e resolvi olhar os dados apresentados com todo o cuidado e, com ajuda de amigos epidemiologistas e engenheiros, refiz as contas com os dados apresentados na coletiva. E o resultado é que a eficácia, como definida em qualquer livro de epidemiologia, é de 49,69%. O anunciado 50,38% só é obtido se os dados forem ajustados usando algum método que não foi explicado na coletiva ou mencionado na apresentação.
Mas primeiro é importante entender o que quer dizer o termo “recorte” quando empregado na análise de dados. Imagine que uma revista automotiva faça uma pesquisa sobre o aparecimento de defeitos em um modelo de carro. Para tanto, pergunta para todos que compraram o modelo nos últimos 12 meses que defeitos foram observados. Imagine agora que ao apresentar os resultados ela afirme que o resultado da pesquisa é que o carro não apresenta defeitos no 1.º ano de uso.
LEIA TAMBÉM
Cálculo que mostra eficácia menor de 50% para Coronavac está errado, diz diretor do Butantã
Se compradores reclamam de defeitos nos carros, ela explica que apresentou só um “recorte” dos dados: compradores com mais de 80 anos que dirigiram menos de 150 km no 1.º ano, e nesse recorte não foram observados defeitos. Se o recorte incluísse só taxistas que rodaram mais de 20 mil km, o total de defeitos seria enorme. Fazer recortes em dados é prática comum, nos ajuda muito a entender o resultado da pesquisa, mas quando se faz um recorte, a honestidade intelectual exige que ele seja explicado em detalhe para não haver dúvida do que está sendo reportado.
No único slide apresentado semana passada, Covas não explicitou que os 78% eram um “recorte” e essa explicação só apareceu nos dias seguintes. Além disso, no slide apresentado apareceram várias linhas que indicavam 100% de eficácia da vacina em evitar mortes e internações em UTIs. Uma afirmação impossível de fazer com os poucos dados coletados. Essa semana o Butantã teve de voltar atrás e dizer que essas afirmações não tinham significado estatístico – poderiam ser mero acaso. Não há garantia absoluta que quem tomar a Coronavac, ou qualquer outra, não pode ter caso muito grave.
Vamos examinar os dados apresentados pelo Butantã no slide 20, quando aparece pela 1.ª vez o número 50,38%. O primeiro que chama a atenção é que, se somarmos o total de pessoas que recebeu a vacina (4.653) com o número dos que receberam placebo (4.599), obtemos 9.252. Esse número, por razões não explicadas, é maior que o total de participantes do estudo citado no mesmo slide (9.242). Essa diferença de dez aparece em vários outros slides. Agora, calculamos a eficácia usando sua definição, que consta em qualquer livro de epidemiologia. É preciso calcular a razão entre duas frações.
Primeiro se divide o número de pessoas que tiveram covid no grupo de vacinados pelo número de pessoas nesse grupo. Depois se divide o número de pessoas que tiveram covid no grupo controle pelo número de pessoas que participaram desse grupo. Finalmente, se divide o resultado da 1.ª conta pelo resultado da 2.ª conta e se subtrai esse número de 1. Fica assim quando usamos os números do slide: 1-(85/4.653)/(167/4.599).
Fazendo essa conta, você chega a 0,4969 ou seja 49,69%, claramente menor que 50%. Mas não foi a conta que o Butantã fez. Ele deve ter introduzido uma correção, provavelmente usando os números pequenos entre parênteses no slide, mas não foram mencionados. Se essa correção é válida ou não, eu não sei e isso é problema para epidemiologistas e a Anvisa decidirem. O fato é que, pela definição de eficácia encontrada nos livros, é 49,69%. A diferença entre 50,38% e 49,69% é muito pequena e não muda significativamente a eficácia. Talvez a correção usada faça todo sentido, mas faltou honestidade intelectual ao Butantã.
Finalmente, uma observação sobre segurança. É verdade que nenhum caso grave de efeito colateral foi observado, mas é bom lembrar que se esses efeitos graves forem raros, ocorrendo por exemplo em 1 em cada 20 mil vacinados, os estudos maiores, com 20 mil vacinados, têm uma chance maior de detectar esses casos que o estudo do Butantã que vacinou 4.653 pessoas.
Escrevo não para argumentar que a Coronavac é ruim ou que não deva ser aprovada. É ela que temos como opção e provavelmente será aprovada se a Anvisa não achar mais erros nas supostas 10 mil páginas de documentos. O importante é aprendermos a separar o que é ciência, e a honestidade intelectual esperada de cientistas, das promessas políticas dos governantes. Como já havia dito antes, para mim Covas deixou de ser cientista e passou a ser político, um vendedor de ilusões.
MAIS INFORMAÇÕES: Field evaluation of vaccine efficacy. Bulletin of the World Health Organization, vol. 63 pag. 1055 1985
Nenhum comentário:
Postar um comentário