Indiferente ao sofrimento dos outros, deslumbrado com o prestígio de uma função que nunca sonhou exercer e ignorado por embaixadores de Brasília, o chanceler Ernesto Araújo era um dos raros brasileiros serenos durante a pandemia. Até o dia em que o general Pazuello entrou em sua sala para tentar salvar a honra do governo.
À primeira vista, o plano de buscar as primeiras vacinas na Índia podia fazer sentido. A visita presidencial ao país é lembrada como uma das raras agendas aproveitáveis do Itamaraty em 2020. Jair Bolsonaro regressara maravilhado com o projeto etnonacionalista formulado pelo premiê Narendra Modi.
O alinhamento de Brasília e Nova Déli na distribuição das vacinas daria uma robustez inesperada ao argumento do chanceler sobre uma nova ordem mundial conservadora e religiosa. O seu cargo, cada vez mais ameaçado, seria certamente reconduzido até o final do mandato.
Faltou avisar os indianos. Embora tenha dito que iria "ajudar toda a humanidade" em seu discurso na Assembleia Geral da ONU em setembro, Modi já deixou claro que vai cuidar primeiro dos seus cidadãos. O seu governo espera que a brutalidade do lockdown e o colapso da economia sejam compensadas por uma campanha épica de vacinação com fortes tons nacionalistas.
Apesar de ainda estar em fase inicial de testes, a vacina Covaxin, desenvolvida localmente, foi aprovada junto com a vacina de Oxford para promover o “made in India”. Em breve, a política do governo vai virar um problema geopolítico: as potências ocidentais vão precisar da Índia, responsável por 60% da produção mundial da vacina, para imunizar a suas próprias populações.
Olhando retrospectivamente para os fatos, parece incrível que um diplomata minimamente funcional tenha acreditado que a Índia toparia arriscar a credibilidade da maior campanha de imunização do mundo só para ajudar o Brasil. Discretos, os indianos tentaram baixar as expectativas e ficaram incrédulos, para não dizer ofendidos, quando viram o circo criado em torno do avião parado no Recife.
Isso sem falar da dimensão moral da operação. Na semana passada, países como Nepal e Bangladesh também enviaram emissários à Índia para negociar vacinas em caráter emergencial. Outros aguardam ansiosamente pela sua vez. Em plena crise humanitária, o governo Bolsonaro, que tem a Coronavac à disposição, achou sensato criar um constrangimento diplomático com o gigante da vacinação só para marcar pontos na sua briga provinciana contra o governador de São Paulo.
O mais frustrante de toda essa história é que o Brasil, com uma indústria de farmacêutica de ponta, uma estrutura logística consolidada, e a presença de laboratórios estrangeiros interessados em desenvolver vacinas, tinha todas as condições de ser a Índia da América Latina.
Ora, enquanto Modi ambiciona vacinar o equivalente da população brasileira até maio, Bolsonaro continua lutando para comprar seringas. A operação Índia mostra que, no governo Bolsonaro, é impossível separar a incompetência da má fé e a crueldade da falta de noção.
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