domingo, 10 de janeiro de 2021

Samuel Pessôa Ainda a Lava Jato, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Na semana passada, escrevi sobre “A Organização”, livro da jornalista Malu Gaspar que trata da história da empresa Odebrecht e de suas ligações com a Operação Laja Jato.

Outro livro, “Lava Jato, Aprendizado Institucional e Ação Estratégica na Justiça”, de Fabiana Alves Rodrigues, complementa a hercúlea reportagem de Malu Gaspar. Fabiana é juíza com formação em direito e economia e pós-graduação em ciência política.

Na primeira parte, é reconstituído o processo de evolução institucional, iniciado nos anos 1990, que dotou o Judiciário brasileiro dos instrumentos necessários para rastrear e caracterizar o crime de
colarinho branco.

Além da criação de nova legislação —com destaque para a delação premiada e as leis que tipificam as organizações criminosas—, houve também alterações de normas e instituições já existentes: na organização da Justiça, com a criação de varas especializadas em crimes de lavagem de dinheiro; na colaboração internacional, em razão do combate ao terrorismo internacional, em larga medida estimulado pelo atentado às torres gêmeas, em 11 de setembro de 2001; e no emprego de novas tecnologias.

Como Fabiana mostra, essa agenda contou com o apoio da maior parte da sociedade e, em particular, dos operadores do Judiciário. Os políticos responderam às pressões da sociedade.

Minha interpretação é que, na redemocratização, nosso sistema jurídico, numa compreensível reação à experiência autoritária, priorizou assegurar os direitos individuais tanto quanto fosse possível, trilhando um caminho excessivamente garantista. Um efeito colateral dessa escolha foi tornar difícil o combate ao crime do colarinho branco.

Não que não houvesse corrupção na ditadura. Simplesmente não temos como saber ao certo, embora seja mais do que razoável supor que sim. Seja como for, construímos durante a redemocratização um sistema jurídico que encontra dificuldades para prender um homicida confesso, como no escandaloso caso
do jornalista Pimenta Neves.

A evolução institucional descrita na primeira parte da coluna foi uma resposta ao excesso de garantismo.

Na segunda parte do livro, Fabiana documenta, de forma convincente, que o Judiciário empregou seu espaço de discricionariedade para acelerar o processo do apartamento tríplex de Guarujá. Foi uma recaída, pois Sergio Moro já avançara o sinal quando divulgou, sem autorização judicial, uma gravação de Dilma Rousseff, impedindo assim que Luiz Inácio Lula da Silva assumisse a função de ministro-chefe da Casa Civil no governo da então presidente.

A leitura do livro de Fabiana é desanimadora. Parece que só temos duas alternativas, excludentes: ou convivemos com a impunidade ou caímos no excesso de ativismo do Judiciário.

É importante lembrar que, como documentado no livro de Malu Gaspar, houve muito crime. A corrupção na política é um problema real e grave, tanto para o bom funcionamento da economia quanto para que se tenha disputas políticas limpas.

Um exemplo: as evidências de promiscuidade entre Lula e sua família, de um lado, e a Odebrecht, de outro, são contundentes. Como sugerido pelas informações que constam no livro de Malu Gaspar, até a alegação de Moro de que, no caso de Lula, a caracterização de culpa não demanda ato de ofício faz sentido: o “contrato” da Odebrecht com o PT era pelo conjunto da obra. Ou, na linguagem das empreiteiras, por empreitada, e não por administração.

Como temperar? Há uma agenda legislativa. Alguns pontos foram tratados pela lei anticrime de 2019.

Mas, como em toda instituição, o funcionamento adequado da Justiça depende da boa vontade de seus atores. É importante que os agentes do Judiciário exerçam autocontenção e não pautem suas ações por agendas políticas. Estas que fiquem a cargo do eleitor.

Samuel Pessôa

Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.


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