domingo, 17 de janeiro de 2021

Samuel Pessôa - Crônica de uma morte anunciada- FSP

 

saída da Ford do Brasil precisa ser analisada a partir de três enfoques: temas ligados à empresa, à indústria automobilística e à indústria de transformação em geral.

A Ford vem perdendo participação no mercado brasileiro. Em 2012, os carros da empresa correspondiam a 9,6% dos emplacamentos dos veículos. Esse número caiu para 7,4% em 2020.
Adicionalmente, a demanda vem encolhendo. Entre 2012 e 2020, os emplacamentos de automóveis se reduziram em 48%, e os da Ford, fruto da queda da participação no mercado brasileiro, tiveram recuo de 60%.

No otimismo dos anos 2000, houve excesso de investimento no setor automobilístico. Segundo dados do Ibre-FGV, o Nuci (nível de utilização da capacidade instalada) de 2014 até março de 2020 foi de 70%. Para o período de 2001 até 2013, o Nuci foi de 83%.

Há 60 anos o instrumento básico de política industrial para estimular o desenvolvimento da indústria por aqui tem sido a barreira tarifária. Trabalho de 2018, de Carolina Bloch e Sergei Soares, do Ipea, calculou que, de 2000 até 2009, a proteção efetiva do setor automobilístico — proteção ao produto líquida da proteção aos insumos — era da ordem de 200%! De 2010 até 2015, a proteção caiu para 90%. Ainda assim, muito maior do que a dos demais setores da indústria.

Se uma indústria precisa de 100%, 200% de proteção para se manter competitiva, há, claramente, grave problema estrutural.

Em relatório preparado em 2017 por pesquisadores da área de desempenho industrial MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) esse aspecto está claríssimo. A escala de produção da indústria automotiva nacional é baixa: em 2016, 48 fábricas produziram 2,1 milhões de automóveis e veículos comerciais leves, ou seja, 44 mil unidades por planta. A indústria não é competitiva com menos do que 200 mil a 300 mil unidades por unidade fabril.

Ao tentarmos fazer tudo, acabamos fazendo tudo muito mal. Em um mundo cada vez mais aberto, e no qual o comércio de produtos intermediários (como autopeças) é cada vez maior, nossa indústria automobilística é anacrônica.

Compare com a Embraer, empresa que produz e exporta aviões. O plano de negócio é muito diferente. A Embraer se especializou em um segmento do mercado: aviões médios. Não tenta produzir Boeings.

Metade do valor adicionado em um avião exportado pela Embraer representa produtos que foram importados. A Embraer se concentra em projetar e em montar aviões. Quase todo o resto ela importa.

Se nós quiséssemos (ou se quisermos) manter o desenho, pensado nos anos 1950, de uma indústria com quase toda a cadeia produtiva interna, teríamos que ter feito uma política industrial muito melhor, inclusive com a construção de marcas nacionais, e concentrada regionalmente. Pode ser no ABC, na região metropolitana de São Paulo, pode ser em qualquer outro local. Mas não é possível a indústria ser dispersa.

Parece que hoje não há mais a menor possibilidade de perseguir esse caminho. Falhamos por 70 anos. O que indica que agora seria diferente?

Adicionalmente, o carro elétrico é uma máquina muito mais simples do que o carro com motor a explosão interna. A mudança tecnológica, mesmo que a quantidade de carros consumida não caia, reduzirá em muito o emprego no setor.

Finalmente, há os problemas associados à indústria de transformação. O setor industrial é aquele que apresenta as maiores cadeias produtivas. Foi aquele em que o processo de divisão do trabalho, com vistas a ganhos de eficiência, mais avançou. Qualquer empresa do setor de transformação em geral adquire no mercado inúmeros insumos intermediários e serviços.

Nossa complexidade tributária, com o altíssimo custo de conformidade e elevado contencioso jurídico, acaba por aumentar muito os custos desse setor. Para a indústria automotiva, o remédio é a PEC 45 da reforma tributária.

Eu e Marcos Lisboa escrevemos longo artigo sobre o setor automobilístico nesta Folha em 2017. Para os interessados, vale a leitura.

Samuel Pessôa

Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.


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