sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Miopia à francesa, editorial FSP

 

O presidente francês, Emmanuel Macron, durante teleconferência - Christophe Simon/AFP

Qualquer pessoa com conhecimento sobre commodities entende que o presidente da França, Emmanuel Macron, falava para seu público interno ao desfechar o ataque à soja brasileira, na terça-feira (12), numa rede social. Não é só no Brasil que políticos oportunistas alvejam desafetos estrangeiros para recauchutar sua imagem doméstica.

A ideia de que agricultores franceses possam plantar quantidade suficiente do grão para tornar aquele país autossuficiente é risível, para não falar da clara impossibilidade de competir em preços com o produto brasileiro.

A desculpa de que toda a soja exportada seja oriunda de desmatamento na Amazônia tampouco se sustenta, mas o vínculo entre esse cultivo e a perda de vegetação natural merece exame mais cauteloso.

O primeiro ponto a considerar é a existência de uma moratória para a comercialização de soja proveniente de áreas amazônicas devastadas recentemente.

Apesar dela, artigo de pesquisadores do Brasil, da Alemanha e dos EUA publicado há seis meses no periódico Science estimou que 500 mil toneladas do grão exportado daqui para a União Europeia podem estar contaminadas por desmatamento ilegal na Amazônia.

Isso corresponde a menos de 4% do total embarcado do Brasil para a UE, cerca de 14 milhões de toneladas. Além disso, só uma parte terá sido colhida em áreas desmatadas ilegalmente, pois mesmo propriedades com passivo ambiental possuem áreas de cultivo autorizado, e apenas uma pequena parcela terá seguido para a França.

De um ponto de vista quantitativo, o ataque de Macron parece insustentável. Dito isso, há que assinalar o fato de a maior parte da soja brasileira exportada para a Europa ser oriunda não da Amazônia, mas do bioma cerrado, de onde teria saído outro 1,4 milhão de toneladas sob suspeita.

A atenção de Macron e do público se volta para a floresta amazônica, por sua biodiversidade e pela aceleração das derrubadas no governo de Jair Bolsonaro, que não faz questão de disfarçar sua agenda antiambiental. Entretanto cumpre apontar que o cerrado —não menos importante do ponto de vista ecológico— sofre pressão maior.

A savana que cobre o Centro-Oeste perdeu 7.340 km² no último ano, ante 11.080 km² na Amazônia, cuja área é mais de 100% maior. A expansão da soja, assim como a da pecuária, do milho e do algodão, está na origem dessa devastação mais pujante e menos valorizada.

O avanço desordenado da fronteira agrícola pode bem tornar realidade, em alguns anos, a acusação lançada hoje sem conhecimento de causa por Emmanuel Macron.

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