sábado, 5 de dezembro de 2020

Os andaimes da democracia, Oscar Vilhena Vieira, FSP

 4.dez.2020 às 23h15

Enquanto nosso criptogoverno vai afundando as botas num pântano de obscurantismo, incompetência e hostilidade a padrões mínimos de moralidade, com impacto devastador sobre a vida dos brasileiros e a saúde da própria democracia, a sociedade civil vem recompondo laços esgarçados pela forte polarização política e o estresse institucional em que imergimos a partir de 2013.

Em 1835, Alexis de Tocqueville expressou seu entusiasmo com o papel das “associações civis”, formadas voluntariamente por cidadãos, no florescimento e na sobrevivência da democracia na América. Além de favorecer a solução de problemas concretos da comunidade pela ação coletiva de seus membros, o associativismo contribuiria, por meio “da influência reciproca que uns exerceriam sobre os outros”, para a formação de cidadãos melhores, com ideias “renovadas, corações ampliados e mentes desenvolvidas”.

Desde cedo, portanto, o conceito de sociedade civil adquiriu um sentido positivo, ligado à promoção da liberdade, do pluralismo e da justiça social, não devendo ser confundindo com associações (in)civis, formadas com o propósito de suprimir direitos ou fragilizar a democracia, como a Ku Klux Klan, os Camisas Negras, ou as milícias digitais contemporâneas.

Foi essa sociedade civil, como vetor democrático, que desempenhou um papel central na debacle dos regimes autoritários na América Latina, no Leste Europeu e na África do Sul, no final dos anos 1980. Não deve causar qualquer surpresa, portanto, os ataques que os novos populistas autoritários têm lançado sobre as organizações autônomas que lhes ousem criticar, contestar ou controlar.

O então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, levanta a nova Constituição Federal de 1988
O então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, levanta a nova Constituição Federal de 1988 - Arquivo Agência Brasil

A promessa do presidente brasileiro de acabar com toda a forma de ativismo parece, no entanto, estar gerando o efeito inverso. Centenas de novas iniciativas e coalizões no campo da defesa da democracia, do meio ambiente, da luta antirracista e do litígio estratégico surgiram nestes dois anos.

Por outro lado, a condução criminosa da pandemia fez com que vetustas organizações como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a Associação Brasileira de Imprensa, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a Academia Brasileira de Ciências e a Comissão Arns de Direitos Humanos, que há muito não se conversavam, retornassem à mesa para lançar o Pacto pela Vida, em abril de 2020.

No próximo dia 10 de dezembro, data em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 72 anos, essas mesmas organizações irão centrar atenção sobre as questões da desigualdade, da democracia e do direito à vida.

Também temos testemunhado uma revolução de veludo no campo da luta antirracista. O assassinato brutal de Beto Freitas tem catalisado, em torno do movimento negro, uma convergência entre organizações e movimentos com missões muito distintas entre si. Exemplo dessa convergência é a ação de diversas lideranças civis e religiosas para a formação de uma aliança contra o racismo. Pastores, rabinos, babas, mães e pais de santo, bispos, padres e líderes de outras denominações querem deixar claro, por meio de atos inter-religiosos, que “quem tem fé preza a vida”.

Como poeticamente lembra o escritor uruguaio Mario Benedetti, a democracia é uma obra sempre inacabada, que exige andaimes para que possa ser constantemente reparada. As organizações da sociedade civil brasileira vêm, mais uma vez, se colocar como esteios de nossa tão maltratada democracia.

Oscar Vilhena Vieira

Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

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