O processo de reestruturação interna do Grupo Globo está em curso desde, pelo menos, 2014. O projeto “Uma Só Globo” fundiu departamentos, eliminou cargos sobrepostos e mexeu em todos os organogramas. A parte mais visível para o público foi o fim dos contratos de longo prazo com grandes estrelas. Só neste ano, deixaram a emissora figurões como Tarcísio Meira, Glória Menezes, Antonio Fagundes, Miguel Falabella, Vera Fischer e Renato Aragão.
As demissões em massa também atingiram a alta cúpula. Em breve, nomes como Silvio de Abreu, que comandava o setor de dramaturgia, e Mônica Albuquerque, uma espécie de super-RH, responsável pelo relacionamento com os muitos talentos da casa, não farão mais parte do quadro de diretores. A razão principal para a saída de todos, comenta-se nos bastidores, não tem a ver com competência profissional ou alterações de rota. Trata-se, simplesmente, do bom e velho controle de custos: os salários em questão eram altíssimos.
De todas as substituições, a de maior impacto será a de Carlos Henrique Schroder, diretor-geral da TV Globo desde 2013. Aparentemente, trata-se de uma transição pacífica. Um comunicado oficial da empresa assegura que já estava acertado há anos que Schroder deixaria o cargo em 2020, e que ele até permanecerá por mais tempo do que o combinado, saindo apenas em meados de 2021. Mas fontes internas afirmam que esse desligamento foi, na verdade, antecipado por causa da pandemia e da queda de receitas publicitárias, que afeta todos os canais abertos.
Schroder sempre foi uma pessoa discreta e pouco frequente nas páginas de jornais, apesar de ter namorado a atriz Patrícia Pillar. Mas sua gestão deixou marcas profundas, reposicionando a Globo de maneira a enfrentar as muitas mudanças por que passa a televisão como negócio.
Um grande desafio foi manter funcionando a todo vapor o carro-chefe da emissora, as novelas. O declínio do gênero, tantas vezes anunciado, pareceu se concretizar em meados da década passada, com o fiasco de audiência de títulos como “Geração Brasil” (2014) ou “Babilônia” (2015). O segmento mais jovem se mostrava mais interessado nas séries, em detrimento dos folhetins tradicionais. Sob o comando de Schroder, Silvio de Abreu conseguiu lançar dezenas de novos autores, aposentar alguns veteranos e emplacar grandes sucessos.
Tudo isso sem descuidar das séries, que tiveram suas produções aceleradas –também em função de gerar conteúdo exclusivo para a plataforma Globoplay, a maior aposta do grupo. Este ímpeto teve um benefício inesperado: quando a quarentena impediu novas gravações, a Globo tinha bastante material inédito para por no ar, como as séries “Hebe” ou “Aruanas”.
Uma onda progressista permeou todas as faixas horárias. “Amor e Sexo”, um programa que já existia antes da gestão Schroder, tornou-se um libelo pelos direitos das mulheres e das minorias sexuais. Sob Marcius Melhem, o humor se livrou das amarras que o impediam de satirizar a concorrência ou os anunciantes, e adquiriu tons mais intensos de crítica política.
Mas o maior feito de Schroder, na minha opinião, foi a recuperação do jornalismo da emissora. Jornalista de formação –e o primeiro profissional do setor a comandar a TV Globo, que nasceu de um jornal– o futuro ex-diretor-geral deu a Ali Kamel, que o substituiu em 2013 na direção da área de jornalismo e esportes, as condições para produzir noticiários mais equilibrados. Com profundidade e contundência, mas sem deixar de serem acessíveis a todas as faixas do público.
A Globo minou sua própria credibilidade com episódios como a edição do debate do segundo turno das eleições presidenciais de 1989, que claramente beneficiava o então candidato Fernando Collor de Mello. Também demorou a dar visibilidade à campanha pelas Diretas-Já, em 1984, e tentou interferir na apuração da eleição para governador do Rio de Janeiro, em 1982, no chamado escândalo Proconsult.
Nenhum profissional dessas épocas continua na casa, mas o estrago foi imenso. Pavimentou o caminho para que os incomodados com o jornalismo da Globo, tanto à esquerda como à direita, apelidassem a emissora de "Globolixo".
Carlos Henrique Schroder e Ali Kamel conseguiram reverter boa parte desse dano. Isto não quer dizer que a Globo seja absolutamente imparcial –nenhum veículo é. Distorções continuam a acontecer, como uma certa proteção incondicional ao ex-juiz Sérgio Moro e à Operação Lava Jato.
Mas o jornalismo da emissora é hoje, de muito longe, o melhor da TV brasileira. Enquanto isto, SBT, Record e RedeTV! competem para ver quem puxa mais o saco do governo.
Investindo pesadamente no streaming e reformulando suas práticas internas, a Globo também é a mais preparada de todas para se adaptar ao futuro. Que, aliás, como diz a musiquinha, já começou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário