Uma investigação da ONG britânica Global Witness afirma que JBS, Marfrig e Minerva, os maiores frigoríficos brasileiros e entre os principais do mundo, têm comprado gado ao menos nos últimos três anos de fazendas com desmatamento ilegal no Pará. A Folha teve acesso à investigação, que durou cerca de um ano.
Os frigoríficos negaram irregularidades à Global Witness.
Junto à entidade brasileira Imazon, a ONG diz ter tido acesso a todas as guias de trânsito animal das empresas em questão de 2017 a 2019 no estado do Pará. Esse documento é necessário para que o gado seja transportado entre fazendas e delas para o abatedouro. Geralmente, os frigoríficos verificam se há irregularidades ambientais ou sociais na fazenda da qual recebem diretamente o gado.
Com as guias em mãos, foi possível verificar por quais fazendas o gado comprado pelos frigoríficos passou. As entidades, então, cruzaram as informações dos guias de transporte com o desmatamento ilegal registrado pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e com autorizações de derrubada da mata —cada propriedade amazônica pode desmatar até 20% de sua área, se tiver aval para isso.
Após o cruzamento de dados, os investigadores verificaram os desmatamentos ilegais ocorridos nas fazendas que fizeram parte da cadeia dos maiores frigoríficos do país nos últimos anos.
A investigação aponta que a JBS comprou gado diretamente de 327 fazendas nas quais ocorreu desmatamento ilegal no período considerado. A Marfrig comprou de 89 e a Minerva de 16.
Com base nesses dados, a ONG afirma ter detectado mais de 17 mil hectares de desmatamento em fazendas que fornecem diretamente gado para essas empresas. Levando-se em conta os fornecedores indiretos, seriam mais de 116 mil hectares.
“Isso é apenas em um estado da Amazônia. Se esse tipo de investigação fosse replicada na Amazônia inteira e no cerrado, seria esperado que as empresas de carne bovina tivessem ligações com o desmatamento muito piores”, afirma Chris Moye, pesquisador-sênior da Amazônia da Global Witness.
Considerando fornecedores diretos e indiretos, a JBS responde pela maior parte do desmatamento detectado, segundo os dados analisados pelo Imazon e pela ONG britânica.
“As empresas de carne bovina concordaram em monitorar os fornecedores indiretos há quase uma década, mas só agora estão começando a fazer algo a respeito disso. Mesmo assim, estão atrasando o cumprimento total por mais quatro ou cinco anos”, diz Moye.
Um dos locais analisados pela investigação foi São Félix do Xingu, lar do maior rebanho bovino do país. Segundo os dados cruzados pelo Imazon, de 2017 a 2019 a JBS comprou gado de 109 fazendas no município nas quais ocorreu desmate ilegal.
Uma delas foi a fazenda El Shadai. A análise mostra que, nos anos considerados, a JBS adquiriu 1.526 bois da fazenda em questão. Enquanto isso, o Imazon detectou 44 hectares de desmate ilegal de 2015 a 2016 e, em 2017, o Ibama embargou a fazenda pelo desmate de 112 hectares.
A Marfrig tem pelo menos um exemplo de compra de gado proveniente de área com desmate ilegal recente em São Félix do Xingu. Trata-se da fazenda MD, na qual houve desmatamento ilegal e embargo do Ibama. Mesmo após o embargo, a empresa voltou a comercializar gado da fazenda em questão, aponta o relatório.
O documento também cita possível contaminação da cadeia produtiva da Marfrig por gado criado na terra indígena Apyterewa, o que é ilegal. Os bois posteriormente seriam levados para a fazenda Serra de Pedra, em uma espécie de lavagem de gado, que fornece para a Marfrig.
Já no caso da Minerva Foods, a relação com o desmatamento ilegal é exemplificada pelas compras diretas da fazenda São Vicente, onde foram registrados 170 hectares de desmatamento não autorizado. Além disso, essa fazenda foi abastecida de 2016 a 2019 por ao menos dez outras propriedades com 264 hectares de desmate —duas das fazendas com embargos do Ibama, segundo a investigação.
As principais empresas de gado brasileiras têm compromissos de não comprar animais de fazendas envolvidas em crimes ambientais ou com trabalho escravo. No entanto, elas não conseguem garantir que isso é cumprido à risca, porque não mantêm rastreamento de toda a cadeia produtiva, do nascimento do bezerro até a vida adulta do animal. O rastreio se concentra, de forma geral, na última fazenda pela qual o gado passa antes de ir para o abate.
O Ministério Público Federal já afirmou que as empresas da área não têm como garantir que a carne que vendem não esteja “contaminada” com crimes.
Não é a primeira vez que as empresas em questão são relacionadas a desmatamento ilegal na Amazônia. Uma investigação recente da ONG Greenpeace no Pará também encontrou ilegalidades ambientais na cadeia de produção da JBS e da Marfrig.
Com a apresentação dos dados de desmatamento ilegal, a investigação da Global Witness afirma que houve falhas nos processos de auditoria contratados —a ONG cita especificamente a empresa norueguesa DNV-GL e a americana Grant Thornton— para verificar o cumprimento dos compromissos das empresas.
Por fim, o relatório aponta também para a responsabilização de instituições econômicas que financiam as empresas citadas. Algumas instituições financeiras já começaram a agir devido a preocupação da contaminação por desmatamento. Recentemente, a Nordea Asset Management excluiu ações do JBS de seus fundos, e analistas do banco HSBC alertaram seus investidores para a falta de solução da empresa para monitorar a cadeia.
OUTRO LADO
A JBS, em resposta à Global Witness, afirmou que parte das compras de gado de fazendas com desmate ilegal ocorreu em momentos em que as propriedades estavam em vias de se adequar ao Código Florestal de 2012, afirmação que não parece encontrar respaldo nos regramentos da área. Outra parte do desmatamento detectado pela ONG teria sido inferior a 6,25 hectares por fazenda, o que é tido como o passível de detecção pelo Inpe.
A JBS também afirma ter identificado, entre as fazendas apresentadas pela Global Witness, diferenças entre o mapa que monitora e o que foi apresentado pela ONG. Em outros casos, a empresa diz não ter efetuado as compras registradas nas guias de trânsito.
A empresa diz ainda que as compras precederam os ilícitos ambientais ou embargos do Ibama.
À Folha a JBS afirma que "não comprou gado de fazendas embargadas por irregularidades ambientais ou em desacordo com o protocolo" do MPF.
O frigorífico, porém, confirmou à reportagem que a fazenda El Shadai apontada pela investigação fazia parte de seus fornecedores, mas que não constava na lista de embargos do Ibama. A empresa aponta que o embargo só foi detectado após consulta pelo CPF do proprietário.
A empresa diz que a fazenda foi imediatamente bloqueada pela JBS. "Tal caso não é comum, por isso a JBS vai comunicar ao Ibama sobre a ocorrência. A sua identificação colaborou com a evolução do sistema de monitoramento da Companhia", afirma, complementando que a lista de embargos é o documento oficial para verificação de fazendas e que, por isso, "a JBS não desrespeitou as normas do MPF".
A Marfrig afirmou que cerca de metade das fazendas apontadas como irregulares pela fiscalização tinha desmatamento anterior à data limite dos compromissos da empresa. Disse também que outras parcelas das fazendas tiveram desmatamentos após a compra ou áreas desmatadas inferiores a 6,25 hectares ou mesmo identificações errôneas de desmatamento pelo Inpe. Por fim, em cinco casos a empresa disse não ter encontrado em seu sistema as fazendas apontadas pela Global Witness.
À Folha a Marfrig afirmou que “não foi identificado qualquer abate irregular, o que significa que eles estavam em conformidade com os critérios sociais e ambientais adotados pela Marfrig nas datas desses abates”. A empresa também ressaltou o novo protocolo para compra de gado assinado por ela e outros frigoríficos junto ao MPF neste ano.
Questionada sobre a fazenda MD, a Marfrig afirma que “não abate animais de nenhuma fazenda com embargo pelo Ibama". "Isso aplica-se também a fazenda MD, em São Félix do Xingu, a qual não consta mais na lista de fornecedores da empresa”.
Por fim, a Minerva afirmou que seis fazendas citadas pela ONG tinham desmatamento anterior ao marco temporal previsto no Código Florestal, que quatro foram bloqueadas como fornecedoras e que duas das fazendas tinham tido desmatamento erroneamente identificado pelo Inpe. Outra das fazendas teria desmate inferior a 6,25 hectares. Segundo a empresa, há ainda uma fazenda com limites territoriais sobrepostos, o que dificultaria o monitoramento. Nos dois casos restantes, a empresa diz não ter compras registradas.
À Folha a Minerva afirmou estar confiante "nos resultados de nossa ferramenta de monitoramento geográfico" e que "é pioneira em ações concretas para o monitoramento dos fornecedores indiretos".
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