Em um dos primeiros dias da pandemia, no início deste ano que parece não ter fim, ainda incrédulo da nova realidade de ficção científica mal escrita a que fomos lançados tragicamente, fui tomar um sol na praça da minha infância.
Por um instante pensei nas crianças de dois, três anos que se maravilhavam com a vida, brincando de astronautas, alheias ao vírus que quebrou o mundo como o conhecíamos. Uma delas divertia-se com um caminho de formigas. Aprendeu que se passasse o dedo entre elas, todas perdiam o rumo. Saiam da fila indiana e andavam aleatoriamente no caos instaurado pelo piá.
Por um momento pensei em mim como uma dessas formigas desnorteadas com a quebra brutal e o desmoronamento do mundo. Os alemães têm esta palavra linda, de uma sonoridade melódica para o espírito do nosso tempo: Zeitgeist; mas, infelizmente, agora ela toma uma conotação fantasmagórica, apocalíptica.
A tragédia parece não ter fim. Nunca tive tantos pesadelos como neste ano. Ou talvez nunca me lembrei tanto deles.
Em 1995, eu escrevi uma peça teatral em três dias, após convulsões causadas pela minha despedida de três anos trabalhando com o diretor de teatro Antunes Filho —”Perpétua”, uma ficção científica de amor e morte. Em um futuro próximo, por causa de um toque de recolher, um poeta ficava confinado durante uma madrugada com uma meretriz. Após horas intensas de convívio forçado, um feminicídio acontecia.
Vinte e cinco anos depois, a minha intuição de jovem dramaturgo passou a existir em muitos lares. Muitas Perpétuas foram assassinadas durante a quarentena. Os casos aumentaram em relação ao ano anterior. A tragédia, quando vem, é catártica. Sem poesia.
Procuro beber na história que nos mostrou que depois de tempestades escuras vem a calmaria luminosa. Lembro sempre dessas crianças, os pequenos astronautas da praça, e vejo que também me sinto uma espécie de astronauta, dentro de uma caverna de Platão contemporânea. Entre o meu mundo e o mundo real, uma profusão caleidoscópica de telas. Olho para meu celular e penso no monólito de 2001 —uma odisseia no espaço. Este novo mundo, não tão admirável assim, é irreversível. Como se mudássemos para sempre a fase do jogo.
A cafonérrima expressão “novo normal” é estampada em todos os lugares. Não é um novo normal. O normal é a vida. Somos seres sociais, precisamos do coletivo para nos entendermos. A morte, mais banalizada do que nunca, virou, para quem não a vê de perto, estatística.
O calor humano, tão inerente ao nosso povo, agora é intermediado por fibra ótica. Como sabemos, a emoção de presenciar ao vivo os acontecimentos do planeta é uma experiência insubstituível. A inteligência artificial está tentando, mas sempre caímos na questão central —a alma. A única certeza é a dúvida. E, como disse Franz Kafka, “há obstáculos em todas as partes, mas a vida consiste exatamente em aceitar os obstáculos”. Deu pane no Zeitgeist. Hora de reinventá-lo. Tudo a fazer. Homens do mundo todo, vacinemo-nos!
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