Não sou de dizer, muito menos de fazer, essas coisas. Mas minha vontade, ao ver o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, no Carrefour, foi de aderir a algum quebra-quebra que aparecesse por perto.
Nada mais contraproducente e burro, na minha opinião, do que a chamada “estratégia black bloc” nas lutas sociais. Leio justificativas delirantes para esses atos de descompensação.
Há horas, entretanto, que a depredação se compreende e pode servir de alerta. O assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, foi uma barbaridade —e despertou imensa comoção. Mas quando
cidades param, em função de distúrbios, fogueiras, barricadas e vandalismo, o impacto é de outra natureza.
Torna-se possível perceber que os oprimidos chegaram a seu limite. Como disse a Folha em seu editorial de sábado (21), o caso de João Alberto é o “enésimo” homicídio de pessoa negra no Brasil. E nada muda.
É natural que se perca a paciência.
Manifestações pacíficas, com milhões de pessoas, são muito mais bonitas do que arrebentar uma vitrine e saquear uma loja. A solidariedade se faz no reconhecimento de que a luta é de muitos e não se esgota na revolta daqueles que sentem o problema na própria pele.
A presença de uma multidão em protesto pacífico tem, contudo, um significado implícito. O de que, “no limite”, milhões de pessoas podem partir para uma ação violenta —e não haverá cassetetes e balas suficientes para reprimir tanta gente.
O “podem” partir para a violência é uma condição importante nesse caso. É de “poder”, efetivamente, que se trata.
O Estado moderno, como se costuma repetir, detém o monopólio do uso legítimo da força. A frase de Max Weber é geralmente utilizada, com razão, para dizer que é ilegítimo organizar milícias particulares, invadir propriedades sem ordem judicial, expulsar indígenas com jagunços, fazer justiça com as próprias mãos.
Há outro sentido, entretanto, no conceito de Weber —e isso começa a ficar claro para mim nos últimos tempos.
Quando milhões de pessoas não mais se contentam com protestos pacíficos, tende a chegar um momento em que reprimi-los, com batalhões de choque, deixa de ser “legítimo” —e o Estado se vê mal das pernas.
A legitimidade das críticas à violência começa a ficar duvidosa em situações desse tipo. Claro que, se algum demente resolver fazer um atentado a bomba no Carrefour, a onda de indignação pela morte de João Alberto irá se inverter.
A política, por definição, é a escolha de meios não violentos na solução de um conflito. Mas isso também significa que o “limite” de toda política é a violência; quando a política fracassa, a violência entra em cena, qualquer que seja o lado, “bom” ou “mau”, que a esteja protagonizando.
Estamos chegando ao limite; ou melhor, a cada dia estamos mais perto do limite.
A punição dos assassinos de João Alberto, se é que vai acontecer, não chega nem perto de resolver o caso.
Eis um momento em que a famosa teoria do “domínio do fato”, celebrizada no julgamento do mensalão, poderia ser lembrada —assim como a da responsabilidade criminal de empresas e instituições.
Para além da esfera criminal, não sei se no Brasil tem funcionado muito o recurso a indenizações na área civil. Em Chicago, ficou famosa a delegacia da área dois, região de maioria negra, onde 125 casos de
tortura foram registrados entre os anos de 1972 e 1991.
Identificou-se o principal torturador, um ex-combatente do Vietnã chamado Jon Burge. Os processos diretamente ligados a seu nome resultaram em indenizações de mais de U$ 100 milhões, que a cidade teve de pagar às vítimas (New York Review of Books, 2 de julho de 2020).
Mas não adianta agir só sobre casos isolados. As empresas terceirizadas de segurança são espelho das polícias militares —e aqui o problema do racismo, da violência e do assassinato precisa ser extirpado pela raiz.
A completa reeducação e humanização do sistema precisa de mais do que protestos. Precisa de governantes que ouçam —e que enxerguem— esses protestos. Pelo jeito, é no mínimo necessário falar mais alto.
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