quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Marcelo Coelho Assassinato de negro no Carrefour mostra que país já está chegando ao limite, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Não sou de dizer, muito menos de fazer, essas coisas. Mas minha vontade, ao ver o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, no Carrefour, foi de aderir a algum quebra-quebra que aparecesse por perto.

Nada mais contraproducente e burro, na minha opinião, do que a chamada “estratégia black bloc” nas lutas sociais. Leio justificativas delirantes para esses atos de descompensação.

Há horas, entretanto, que a depredação se compreende e pode servir de alerta. O assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, foi uma barbaridade —e despertou imensa comoção. Mas quando
cidades param, em função de distúrbios, fogueiras, barricadas e vandalismo, o impacto é de outra natureza.

Torna-se possível perceber que os oprimidos chegaram a seu limite. Como disse a Folha em seu editorial de sábado (21), o caso de João Alberto é o “enésimo” homicídio de pessoa negra no Brasil. E nada muda.

É natural que se perca a paciência.

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Manifestações pacíficas, com milhões de pessoas, são muito mais bonitas do que arrebentar uma vitrine e saquear uma loja. A solidariedade se faz no reconhecimento de que a luta é de muitos e não se esgota na revolta daqueles que sentem o problema na própria pele.

A presença de uma multidão em protesto pacífico tem, contudo, um significado implícito. O de que, “no limite”, milhões de pessoas podem partir para uma ação violenta —e não haverá cassetetes e balas suficientes para reprimir tanta gente.

O “podem” partir para a violência é uma condição importante nesse caso. É de “poder”, efetivamente, que se trata.

O Estado moderno, como se costuma repetir, detém o monopólio do uso legítimo da força. A frase de Max Weber é geralmente utilizada, com razão, para dizer que é ilegítimo organizar milícias particulares, invadir propriedades sem ordem judicial, expulsar indígenas com jagunços, fazer justiça com as próprias mãos.
Há outro sentido, entretanto, no conceito de Weber —e isso começa a ficar claro para mim nos últimos tempos.

Quando milhões de pessoas não mais se contentam com protestos pacíficos, tende a chegar um momento em que reprimi-los, com batalhões de choque, deixa de ser “legítimo” —e o Estado se vê mal das pernas.

exemplo de Donald Trump ajuda nesse caso. Na campanha eleitoral, seu discurso foi o de condenar os “desordeiros”, os antifas, os protestos violentos. A estratégia não colou: evidentemente, ele estava defendendo um sistema racista; não estava apoiando sua superação por meios não violentos.

A legitimidade das críticas à violência começa a ficar duvidosa em situações desse tipo. Claro que, se algum demente resolver fazer um atentado a bomba no Carrefour, a onda de indignação pela morte de João Alberto irá se inverter.

A política, por definição, é a escolha de meios não violentos na solução de um conflito. Mas isso também significa que o “limite” de toda política é a violência; quando a política fracassa, a violência entra em cena, qualquer que seja o lado, “bom” ou “mau”, que a esteja protagonizando.

Estamos chegando ao limite; ou melhor, a cada dia estamos mais perto do limite.

A punição dos assassinos de João Alberto, se é que vai acontecer, não chega nem perto de resolver o caso.

Eis um momento em que a famosa teoria do “domínio do fato”, celebrizada no julgamento do mensalão, poderia ser lembrada —assim como a da responsabilidade criminal de empresas e instituições.

Para além da esfera criminal, não sei se no Brasil tem funcionado muito o recurso a indenizações na área civil. Em Chicago, ficou famosa a delegacia da área dois, região de maioria negra, onde 125 casos de
tortura foram registrados entre os anos de 1972 e 1991.

Identificou-se o principal torturador, um ex-combatente do Vietnã chamado Jon Burge. Os processos diretamente ligados a seu nome resultaram em indenizações de mais de U$ 100 milhões, que a cidade teve de pagar às vítimas (New York Review of Books, 2 de julho de 2020).

Mas não adianta agir só sobre casos isolados. As empresas terceirizadas de segurança são espelho das polícias militares —e aqui o problema do racismo, da violência e do assassinato precisa ser extirpado pela raiz.

A completa reeducação e humanização do sistema precisa de mais do que protestos. Precisa de governantes que ouçam —e que enxerguem— esses protestos. Pelo jeito, é no mínimo necessário falar mais alto.

Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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