O mundo era outro, mas a eleição era a mesma, municipal. A candidata do PC do B amparou concorrente que desfalecia, em meio a debate. Era a disputa pela Prefeitura do Rio de Janeiro, e foi ao vivo que Flávio Bolsonaro passou mal. Boa tampouco foi a recepção à solidariedade da médica. O pai do moço disse que comunista não tocava em filho seu. Um gesto miúdo de civilidade rechaçado.
Bolsonaro nunca assimilou a etiqueta do respeito ao adversário. Mas sua postura era incomum. Frequentes eram ações como a de Jandira Feghali. Lula confortou Fernando Henrique Cardoso, quando da morte da esposa, ato retribuído anos adiante. Circula por aí foto de José Serra vacinando Lula, nos tempos em que a credibilidade do conhecimento científico era ponto pacífico. Quando do acidente de Eduardo Campos, políticos de todos os matizes prestaram homenagens.
A política nunca foi, nem aqui, nem na China, isenta de truculência e ignorância. Mas, nas democracias, a civilidade é a regra. Ela prevaleceu entre nós por bastante tempo.
O bolsonarismo é um barbarismo, mas não uma revolução. O mundo da polidez política foi indo abaixo antes dele, de grão em grão. Aécio Neves questionou no TSE a lisura da reeleição de Dilma. As urnas, acusadas de resultado desagradável, viram-se desclassificadas como porta-vozes da democracia.
Acabaram trocadas, no quesito legitimidade, pelo martelo dos homens de toga, nos quais ninguém vota. O lavajatismo começou caçando os petistas, mas seu movimento de purificação respingou em todos os escolhidos por eleitores. O Congresso, no impeachment da presidente, ratificou o soterramento das urnas. Nesse dia, Bolsonaro exprimiu, em alto e bom som, sua aversão às regras da democracia, da cortesia e da gramática.
Não foi Bolsonaro quem produziu a terra arrasada, foi o desmoronamento da etiqueta democrática que lhe abriu o espaço. Muitos dos civilizados brasileiros que, nos últimos dois anos, vivem o luto da política regida pela polidez, contribuíram com sua pá de cal para que ela fosse para o brejo.
As mudanças não foram abruptas. Foram pequenos sismos sucessivos. O choque cada vez menos educado entre forças contrárias foi empurrando o país para o poço sem fundo.
Apesar dos gulosos por novidades, que, desde domingo (15), festejam uma estação de “renovação” e “virada”, os votos não desarranjaram placas tectônicas. Elegeram-se líderes indígenas, é certo, mas também os que não reconhecem seus direitos. Despontam negros e mulheres, mas ainda bem poucos, enquanto cresceu a representação de policiais militares. Chegaram transgêneros, mas voltaram pastores antiaborto. Há vereadores e prefeitos jovens, como provectos. Gente de esquerda, centro e direita, os de primeira viagem e os velhos de guerra. O PT não morreu, tampouco seus inimigos produziram a terra arrasada. Nem o bolsonarismo foi enxurrada a varrer o resto, nem foi alagado pela enchente de promessas. A política segue equilibrando tendências e contratendências. Houve remexer de terreno, não um terremoto.
A boa notícia é que não faz falta candidato antissistema, no estilo Huck. As urnas encontraram opções, à esquerda e à direita, dentro dos partidos. E opções adeptas da etiqueta democrática. Pelo menos em São Paulo, ganhe quem ganhar, o próximo prefeito será pessoa civilizada.
Saliente foi a abstenção relativamente baixa, considerando-se a pandemia. De máscara e álcool gel, a maioria dos brasileiros reiterou que seu partido é o voto. Se há vitória evidente é a da urna eletrônica. As instituições, que, nos últimos anos, sofreram trancos e escorregaram por barrancos, não se esborracharam. Temos uma democracia cheia de esparadrapos, mas democracia assim mesmo.
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