Samuel Pessôa
Em maio, a previsão da pesquisa Focus, conduzida pelo BC entre analistas do mercado, sinalizava que a inflação esperada para 2020 era de 1,5%. Hoje, está em 3,45% e, provavelmente, fechará o ano em torno de 4%.
A economia tem passado por diversos choques inflacionários. O principal deles é o choque do câmbio. A desvalorização do real no ano foi de 33%. Adicionalmente, o enfraquecimento da moeda foi simultâneo à elevação dos preços de diversas commodities. Por exemplo, a soja subiu 45%, o milho e o trigo tiveram alta de 20%, e o minério de ferro, de 38%.
Como observei na coluna de 3 de outubro, há, em geral, um efeito gangorra entre o câmbio e o preço internacional das commodities. Quando as commodities sobem, por sermos exportadores de matéria-prima, nossa moeda se fortalece, contrabalançando aquela alta em termos de impactos na inflação. Esse efeito gangorra insula a economia brasileira das pressões dos preços internacionais das commodities.
Quando não há o efeito gangorra, os preços em reais sobem pelos dois motivos: o preço no mercado internacional aumentou e o câmbio se desvalorizou.
A razão pela qual o efeito gangorra deixou de existir é o risco fiscal. A piora das contas públicas, com os gastos excessivos com a epidemia, e a incerteza política com a falta de liderança do Executivo fizeram o câmbio andar na direção contrária da que habitualmente seguiria diante da alta das commodities.
Isso levou o índice de preços ao atacado, IPA da FGV, a disparar até a elevadíssima inflação de 27,5% nos 12 meses terminados em outubro. Surgiu um enorme descolamento entre o IPA e o IPCA, índice de preços ao consumidor que serve de meta de inflação, que variou 3,5% no mesmo período.
Esse descompasso tende a criar pressões de custo nos preços ao consumidor. Adicionalmente, tem aparecido uma inflação de bens da Covid-19. As pessoas ficaram em casa e aproveitaram para trocar TV, computador e colchão, para comprar bicicleta etc. A maior demanda pegou uma indústria saindo da forte recessão do 2º trimestre, com estoques baixos. A inflação de duráveis roda pouco abaixo de 3% agora, ante 0,5% no ano passado.
Somando tudo, a inflação passará por um pico de 6%, ou pouco menos, em maio e deve fechar 2021 pouco abaixo de 4% —já ligeiramente acima da meta. Parte da “devolução” (recuo que se segue a uma elevação) da inflação após maio será devida ao previsto recuo da inflação dos bens duráveis com o ajuste dos estoques da indústria.
Evidentemente, a devolução da inflação entre maio e o fim de 2021 pressupõe que o câmbio volte a se valorizar e que haja acomodação do preço das commodities. E, para que o câmbio se reaprecie, é preciso haver uma solução política que garanta que a situação fiscal será rearrumada.
Assim, é possível pensar também num cenário alternativo de desancoragem fiscal, em que o câmbio suba ainda mais, para R$ 6, por exemplo, e a inflação feche 2021 na casa de 5,5%, bem acima da meta inflacionária.
Pensava que teríamos ao menos dois anos pela frente de calma na inflação. Teríamos tempo de consertar a política fiscal sem a necessidade de o BC subir juros (o que impacta a dívida pública, via serviço da dívida do governo). Agora, porém, creio que, se a arrumação da política fiscal não vier logo, veremos o BC tendo que subir juros bem antes do imaginado.
Quando esse momento chegar, a perspectiva de dívida crescente qual bola de neve jogará o câmbio ainda mais para cima, realimentando a inflação e a necessidade de mais altas de juros. É um círculo vicioso que a sociedade brasileira, por meio do seu governo e sistema político, deveria fazer de tudo para evitar.
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