“A América está de volta.”
A frase foi repetida pelo presidente eleito Joe Biden a líderes estrangeiros que telefonaram para dar parabéns pela vitória. E foi o mote da apresentação de um primeiro time do alto escalão de segurança nacional de seu governo.
Deixando de lado o fato de que talvez, com exceção de britânicos, o resto do mundo não se refere aos Estados Unidos como sinônimo de todo o continente americano, o recado era claro: a diplomacia está de volta, e também o país engajado com seus aliados, membro de órgãos a tratados multilaterais.
Mas o termo “América” lembra também o autoengano que tanto marcou o país no século 20 e uma ideia na qual Biden e os nomes do gabinete até agora anunciados acreditam, a do excepcionalismo americano.
Na terça (24) Biden disse, numa entrevista, que seu governo não será uma terceira gestão Obama, admitindo o óbvio, o mundo que ele encontra em 2021 não é o que Obama recebeu em 2009.
O país está mais fragilizado do que em qualquer outro período desde a Segunda Guerra, economicamente vulnerável e insustentavelmente desigual, sem falar do fosso cultural agravado pela desinformação na era digital.
Mas, aos 78 anos, Biden é um pio defensor do excepcionalismo como guia do papel dos EUA no mundo e adepto de proclamações como “somos os líderes do mundo livre” e “precisamos recuperar nosso assento à cabeceira”.
É uma ideia congelada no real papel americano na recuperação da Europa e da democracia no pós-guerra, o país que dispensava ajuda em vários continentes e consolidava seu bloco de poder na Guerra Fria.
Assim como seu contemporâneo na política John Kerry, ex-combatente no Vietnã e nomeado enviado especial para o clima, Biden chegou a Washington quando o país se recuperava do fiasco da guerra que marcou sua geração.
É uma visão de mundo diferente da que foi formada por quem se tornou adulto após o 11 de Setembro e testemunhou o outro fiasco, o da invasão do Iraque, uma guerra que, somada ao combate ao terrorismo com emprego de tortura, foi mais decisiva para erodir o poder americano.
No discurso de vitória, Biden prometeu que os EUA vão liderar “não pelo exemplo de poder, mas pelo poder do nosso exemplo”. Em nenhuma outra área esta afirmação é tão válida quanto na ambiental.
Se os americanos combaterem, não só a mudança climática em casa, como o preço desigual que ela impõe à população, terão muito mais autoridade para envergonhar tiranetes como o capitão incendiário que vomita metáforas de pólvora e saliva.
Nos últimos quatro anos, expatriados como esta colunista viveram um duplo exílio —o do país de onde partimos e o do país que nos acolheu. Dia após dia, as demonstrações de crueldade e xenofobia e o fortalecimento da cultura de supremacia branca esmagaram um sentimento que acompanha todos os imigrantes, o do futuro possível.
A má notícia é que, a partir de janeiro, vamos ter uma ideia melhor do estrago causado por Donald Trump, seu bando de renegados nas instituições de governo e seu poder de limitar a agilidade da gestão que começa. A boa notícia é que a América dos slogans ufanistas não volta.
Quanto antes o governo Biden reimaginar este país, melhor.
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