quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Marcelo Coelho Por que há tantos pobres, desempregados e 'losers' que votam em Trump?, FSP (definitivo)

 A recusa de Donald Trump em aceitar sua derrota é tão ridícula, e tão coerente com seu perfil psicológico, que, no fim, estou torcendo para que continue por um tempo.

Acho que terá o efeito de isolá-lo mais e de fortalecer o lado minimamente pragmático do Partido Republicano.

Trump, como sempre, aposta na divisão e no radicalismo —o que tendia a ajudá-lo quando estava forte. Mas a coisa muda quando ele se sente ferido.

Por mais indigno e absurdo que seja o comportamento de um presidente, o próprio cargo é capaz de lhe conferir certa legitimidade. Algum respeito pelos símbolos —a bandeira, o palácio, o carro oficial, os seguranças— se transfere para o ocupante da Presidência, mesmo que ele faça tudo para não ser levado a sério.

"Mister president! Mister president!" —essas simples palavras, mesmo se pronunciadas pelo mais crítico dos repórteres, já modificam um pouco a realidade deprimente, a palhaçada abjeta, a imbecilidade inflacionada.

Ilustração com dois perfis espelhados. No lado esquerdo, há um rosto branco com rachaduras e, no lado direito, um rosto branco inteiro com cabelos loiros. Há uma linha preta no meio da composição
André Stefanini/Folhapress

Insistindo em ser tratado como vencedor, Trump se vê destituído dessa aura oficial.

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Os grupos extremistas e fanáticos que apoiam Trump continuarão em sua cruzada, certamente. Vivem em outra realidade. Mas era diferente quando o fanatismo se via confirmado pelos fatos reais, e pelos votos que deram a Trump a Presidência em 2016.

O membro mais maluco de uma minoria supremacista estava coberto, e protegido, pelo fato de que Trump vencera a eleição. Agora, o mecanismo se inverte: é Trump quem precisa da cobertura dos mais fanáticos. E isso dificulta as coisas.

Afinal, o fascista médio tem, sobretudo, adoração pela força, pelo poder, pela truculência. Um líder enfraquecido, choramingão e acuado nunca é tão sexy. Para usar uma palavra tão ao gosto dos americanos e da direita, Trump vai se transformando naquilo que ele mais despreza —o "loser", o perdedor, o fracassado.

Fico pensando por que políticos de extrema direita, dedicados explicitamente a beneficiar apenas o 1% mais rico da população, acabam fazendo sucesso entre muita gente pobre, sem chance nenhuma no chamado sistema "meritocrático".

A razão talvez seja, simplesmente, a de que esses eleitores não querem ver o que são de fato. Receber ajuda do governo, ter acesso a educação e saúde gratuitas talvez lhes pareça um rebaixamento, uma humilhação. Votariam em Trump, assim, por amor próprio. "Não sou um pobre coitado." Maldito seja o esquerdista "de bom coração" que me vê desse modo!

Destituído de tudo, ameaçado de perder a casa, mergulhado em dívidas, desempregado e burro, esse eleitor tem um único patrimônio: sua crença no livre mercado, na competição e na meritocracia.

É algo que pode ostentar de comum com Trump e todos os milionários que este simboliza.

Há outra coisa, entretanto.

Esse eleitor tem mais um tesouro que ninguém vai tirar: é branco. Sua raça é o que o afasta da desgraça completa; bem-vindo o presidente que não o confunde com negros e latinos.

Espero, naturalmente, que num futuro próximo todas as aberrações que Trump estimulou e legitima, nos Estados Unidos e no resto do mundo, entrem em declínio.

Tomara que o bando de malucos que até agora se beneficiaram de alta projeção pública venha a se recolher na própria e merecida insignificância.

Ia dizer: que todos voltem para o buraco de onde saíram.

Mas eles tiram força de uma parcela da população importante. Nesse caso, não se trata de mandar milhões de iludidos e idiotas de volta ao buraco; trata-se de tirá-los de lá.

O desempregado fascista, o pequeno empresário falido, o evangélico fanático, o racistazinho adolescente, a dona de casa que admira torturadores e milicianos não podem ser vistos, a meu ver, como "caso perdido" para a política de esquerda.

Há derrota, sofrimento e desamparo em cada uma dessas pessoas. Para elas, certamente fazem pouco sentido nossas mensagens de "justiça social", "igualdade" e "direitos humanos". Meu impulso é desprezar gente assim.

Mas é preciso encontrar outro caminho. A vitória de Biden foi precária, sabemos disso. Muita imaginação será necessária para entender e conquistar os pobres de direita; sem isso, o fascismo não se vence.

Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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