Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
29 de novembro de 2020 | 05h00
Já vi a ideia atribuída a muitas pessoas: “Pior do que um idiota é o idiota com iniciativa”. Há variantes. Substituem por “burro com ideias”, falam de “anta empreendedora” e até uma categoria ainda mais danosa: o “imbecil com mandato”. Será?
Tal como o louco manso, o idiota tranquilo é pouco assustador. Ele fica lá, sempre quieto. Não perturba ninguém. É de natureza dócil. No fundo, desfruta de uma apatia com consciência: sabe que é ruim e nada pretende. Talvez seja um dom da idiotia: a consciência da própria incapacidade. O idiota quieto existe em todos os empregos, famílias e partidos. Ele é quase alguém importante para a autoestima do grupo.
Há um outro e perigoso grupo. A banda carioca Matanza chegou a fazer uma música: Tudo Errado. Na letra, descrevem o idiota com iniciativa: “Sabe que tá fazendo errado e vai fazendo mesmo assim; Sabe que tá ficando torto e que vai ficar ruim; Sabe que vai ficar por isso e todo compromisso pode deixar de lado; É mesmo um desafortunado, quem acha muito engraçado fazer tudo errado”.
Os idiotas perguntam? Li, na internet, que um restaurante do Colorado (EUA) passou a cobrar 38 centavos pelas “perguntas idiotas” (o lugar é o Tom’s Diner). Dá para discutir itens da conta, porém, como julgaríamos se a pergunta foi idiota ou não? Quem seria o juiz? A multa seria um bônus se a pergunta pouco expressiva ou sem lógica partisse do funcionário da casa?
O mundo da iniciativa sem inteligência deve ter sido ampliado pela internet. Depois, de tanto ouvir que todos são capazes, alguns passaram a acreditar. Eu vivi a mudança. Quando jovem, os professores insistiam que éramos limitados e pouco aplicados. Alguém dizia algo que o mestre julgasse menos inspirado, e invocavam-se animais como capivara. A gente ia aprendendo a ficar mais quieto, incomodar pouco, fazer menos perguntas... A sala era mais opressiva e o erro era sempre nosso. Naquela época, tínhamos medo da nossa limitação.
Os anos avançaram. Os alunos ficaram traumatizáveis. Surgiram inteligências múltiplas para consolar. Você não entende Mínimo Múltiplo Comum? Não há problema: você deve ser uma inteligência sinestésica. Lê uma frase e não capta a ideia principal? Claro, você tem mais habilidade interpessoal. Desaparece o burro e emerge o mal classificado. Todos somos gênios e cabe aos pais e professores incentivarem que cada rebento ou pupilo ache seu nicho.
A ideia de que qualquer obstáculo natural seria puro pensamento derrotista inventado por um cérebro sabotador é de grande alcance. “Acredite em você” é mantra. É o que se espera de um líder hoje: que faça cada um descobrir o gênio reprimido e esquecido.
Pensamento incômodo. Uma amiga descreve o filho como tendo problemas de autoestima. Olho para o jovem e penso se ele não seria apenas realista. Claro, isso está fora de moda. Nossa tendência atual é destacar a extrema beleza de todo mundo, a genialidade das frases e a originalidade estética.
E como eles foram filmados e descritos? Lars von Trier inventou sobre um grupo de jovens que se fingem de idiotas (Idioterne, 1998). Dostoievski escreveu sobre um príncipe cristão e epilético que é visto como um bondoso ingênuo (O Idiota). Cervantes inventou o mais genial tolo da história: D. Quixote. O problema do dinamarquês, do russo e do espanhol é que seus idiotas são sedutores e, no fundo, brilhantes. Falta a obra literária e cinematográfica sobre o idiota raiz... e com iniciativa.
Talvez seja nossa defesa permanente. Os governantes são todos idiotas. Chefes, por definição, são idiotas com cargo. Os motoristas à minha frente, claro, dirigem de forma burra. Nas festas de família, eles parecem maioria. Os gênios são, de fato, escassos. E se nossa fixação na categoria fosse puro espelho, ou defesa contra a consciência do nosso limite? O príncipe da obra de Dostoievski esconde uma enorme capacidade sob um olhar pouco desafiador. E se nossa potência criativa fosse reduzida mesmo? Nosso medo seria o idiota com iniciativa ou o idiota universal que nos engloba?
Sim, o mundo é povoado de idiotas com iniciativa. Eles ocupam cargos e se destacam. São notícia. Todos ostentam redes sociais, algumas com muitos milhões de seguidores. Eles mandam e se reproduzem. E se, afinal, eu que sou fustigado por eles apenas fosse um idiota sem cargo e sem iniciativa? Um mundo de parvos famosos e eu, imbecil obscuro, fico macerando a vingança de todo ressentido. Afinal, os idiotas de cima fizeram a única coisa fatal que eu, o idiota de baixo, jamais perdoarei: destacaram-se da massa de pedrinhas ladrilhadas do imenso painel da platitude humana. Por que eles não se conformaram, como eu, com a linearidade de tudo? Por que não permanecem como eu, balindo com o rebanho imenso e uniforme, esperando o grande libertador que é o fim?
Falta um mês para encerrar este ano no qual idiotas famosos e vírus anônimos disputaram a primazia. Boa semana para nós que somos especiais e escapamos do ônus da iniciativa...
É HISTORIADOR E ESCRITOR, AUTOR
DE ‘O DILEMA DO PORCO-ESPINHO’,
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