segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Mercado paira sobre todos e não dá um pio sobre obscurantismo, Angela Alonso , FSP

Quem acredita na blindagem da equipe econômica desconhece rotina dos casamentos

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presidente adora a metáfora matrimonial, mas é improvável que conheça a história de Galateia. Trata-se da mulher perfeita, esculpida em marfim por Pigmaleão, que se apaixona por sua própria criatura. Afrodite então lhe dá vida, e escultor e escultura se casam. 
Para seguidores do Mito que desconheçam esse mito, há o Pinóquio da Disney, embora de equivalência imperfeita. É que no filme falta casamento e essa instituição se tornou central no Brasil, desde que o governo pôs o anel no dedo desta entidade mítica, o Mercado. 
Sem abstrações —a opinião pública, a justiça, o dinheiro— o cotidiano não funciona. Esses entes imaginários orientam comportamentos, põem a vida social para andar. 
ficção Mercado, contudo, suplantou suas parentes e ganhou estatuto não de humanidade, mas de divindade. No jornal, tromba-se a toda hora com esse ser extraordinário, como se flanasse, com suas planilhas, sobre os humanos comezinhos, com suas enchentes e queimadas.
Como Galateia, a criatura pensa e age por si —“o Mercado diz”, “o Mercado aposta”— numa unidade de propósito, independente de sociedade, da política, enfim, das pessoas de carne e osso. É essa entidade, o Mercado, quem celebra a melhora econômica, apesar dos “probleminhas” da democracia, como se uma coisa nada tivesse com a outra. O presidente, definiu seu vice, é um brincalhão, mas, tudo bem, pois seu ministro da Economia não brinca em serviço. Basta deixar Bolsonaro em casa fazendo graça, enquanto Guedes dá o ar de sua graça em Davos.
Se outros membros do governo propalam medidas surreais e autoritárias sobre cultura, arte, educação, populações indígenas, crianças, o Mercado nem se apoquenta. Tem um olho só vidrado em Guedes, que, de seu lado, é cego para assuntos extramercadológicos, como a desigualdade. Mercado e ministro miram apenas as reformas, outro ente imaginário.
As barbaridades dos “ideológicos” do governo em nada os afligem, pois incidem em áreas “soft” —mesmo que aí se incluam meio ambiente e relações exteriores, cruciais para os negócios. 
O desprestígio à ciência tampouco os amofina. Nenhum dos atos descabidos do governo mereceu seu protesto. Nem uma palavra sobre a troca de pesquisadores de prestígio por indivíduos sem a qualificação adequada nas gestões da Biblioteca Nacional e da Casa de Rui Barbosa. Nem um protesto contra um defensor do “design inteligente” na Capes. Nem um pio sobre a restrição de viagens de pesquisadores das universidades federais para congressos internacionais. Nem uma queixa contra as trapalhadas no Enem.
O Mercado não mexe suas palhas para apagar o fogaréu obscurantista que se abateu sobre a ciência nacional, imolando o esforço de vários governos —até os da ditadura, que muitos apreciam.
O Brasil tem cientistas de primeira linha e não apenas nas ciências duras, para a qual o Mercado às vezes pisca. Tem inventores de remédios e criadores de políticas públicas de reputação internacional. Ambos salvam vidas.
São crias de universidades públicas e centros de pesquisa que os governistas desprezam, todos trabalhando em condições inferiores às de congêneres estrangeiros. Em países que realmente visam o desenvolvimento, chove dinheiro para a pesquisa. Aqui, só tempestade.
O Mercado silencia, calculando que o estrago atinge a comunidade científica apenas. Mas afeta o futuro do país. Atrasa todos os brasileiros, inclusive os do Mercado, tão sequioso por inovação e profissionais qualificados. As incompetências governistas impactam todos, pois os com commodities e os sem elas vivem na mesma sociedade.
Qualquer pessoa minimamente preparada sabe que a produção científica tem efeitos sobre a economia inteira de um país. Recursos para a pesquisa são investimentos, não gorduras. 
Esse é um campo regido pelo mesmo princípio que o Mercado advoga para si: a liberdade —neste caso, a de pensar em vez de acatar dogmas.
O pessoal do dinheiro julga a política anticientífica conversa circunscrita a feudos como o de Damares, míopes para sua fronteira aberta com os campos de Tereza Cristina.
A metáfora da blindagem da equipe econômica denota a ilusão de que o Mercado possa casar com o bolsonarismo e ficar incólume à sua insensatez. 
Quem nisso crê ou desconhece a rotina dos casamentos ou se imagina Afrodite, com poderes para reconverter sua criatura em pedra. Mas, a despeito da fé de seus adoradores, o Mercado não é deus, não opera milagres, nem seus carros blindados protegem contra a ignorância.
Angela Alonso
Professora de sociologia da USP e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

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