quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Sérgio Rodrigues A baderna e a caserna, FSP

Como uma palavra nascida no meio teatral virou senha nos quartéis?

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Baderna é a palavra preferida da direita brasileira para nomear agitações sociais que possam, ao menos supostamente, levar à ruptura institucional. Também é uma palavra muito querida por etimologistas românticos.  
Convém explicar: romântico é aquele diletante que só gosta das palavras que tenham uma história pitoresca. Muitas vezes, na falta de uma origem assim, a inventa. 
Baderna poupa o sujeito desse trabalho criativo. Etimologistas sérios concordam que esse substantivo feminino (não confundir com seu xará do vocabulário náutico, importado do francês “baderne”) tem uma história digna de folhetim.
Devemos o brasileirismo baderna, “desordem, bagunça”, à bela e carismática bailarina italiana Maria Baderna (1828-1892), também chamada Marietta, que se radicou no Rio de Janeiro em 1849.
O Presidente da República, Jair Bolsonaro
O Presidente da República, Jair Bolsonaro - Pedro Ladeira - 20.fev.2020/Folhapress
Era uma bailarina clássica do primeiro time, discípula do coreógrafo Carlo de Blasis. O exílio tinha motivo político: seu pai era um republicano italiano derrotado na Revolução de 48.
Fiel ao progressismo da família, Marietta logo se interessou no Brasil pelas danças dos escravos, e acabou por incorporar a seus espetáculos elementos do lundu. Dizem que era, além de uma artista e tanto, uma mulher e tanto.
Pelos anos seguintes, foi muito famosa. Tinha gangues de fãs babões, ruidosos, que travavam na imprensa batalhas épicas com conservadores ultrajados. 
“Boneca de Cupido” e “demoninho travesso” eram algumas das palavras ejaculadas pelos marmanjos contra e a favor de Baderna.
Nesse caldo de ânimos sexuais e morais exaltados nasceu o sentido atual da palavra. O lexicógrafo brasileiro Antônio Joaquim de Macedo Soares, o primeiro a registrar o verbete baderna, anotou em 1884 a seguinte definição: “Súcia [bando], quase sempre dançante”. 
Sim, baderna era a princípio um grupo de rapazes boêmios e arruaceiros, em referência aos fãs da bailarina. Daí à bagunça propriamente dita é a distância de uma metonímia.
No entanto, por que caminhos uma palavra nascida no meio teatral do século 19 acabou abraçada nos quartéis no século seguinte? Eis uma questão que aguarda estudos.
Não duvido que parte da explicação esteja na mescla de conotações políticas e morais da baderna, com os baderneiros vistos como tipos degenerados —uma ideia presente na palavra desde o berço.
O fato é que a baderna virou clichê dos homens de uniforme. Ao longo do século passado, associada a princípio a anarquistas e comunistas, mas também, como fantasma, a qualquer quebra de hierarquia militar, se consolidou em seu vocabulário como senha e álibi para o uso da força. 
Nesse contexto, baderna é “qualquer agitação política que ameace a ordem vigente”. Um sentido tão central no pensamento militar brasileiro —decisivo de 1935 a 1964, e além— que é surpreendente não constar ainda dos dicionários como acepção específica.
Foi nesse sentido que, como lembrou Elio Gaspari há poucos dias, o general e futuro presidente Costa e Silva usou a palavra em 1961, ao debelar uma revolta de PMs e bombeiros em São Paulo: “Isso é uma baderna. Será dissolvida a bala. Pensem nos seus filhos”.
Assim, pelo menos, era a palavra no século 20. Hoje, quando o governo se recusa a chamar pelo nome o motim dos PMs cearenses e o próprio presidente convoca seus baderneiros à rua para pedir o fechamento do Congresso, das duas, uma: ou a baderna está mudando, ou mudou o que os militares brasileiros pensam dela.
Sérgio Rodrigues
Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”.

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