Daniel Martins, O Estado de S.Paulo
24 de fevereiro de 2020 | 05h00
Introduzo na poesia/A palavra diarreia.//Que mata mais do que faca,/mais que bala de fuzil, /homem, mulher e criança /no interior do Brasil. (A Bomba Suja, Ferreira Gullar)
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O medo é mau conselheiro. Como um bom alarme, é programado para exagerar. É como o detector de fumaça – você sabe que nem sempre que tocar será um incêndio, mas alarmes falsos são um preço baixo a se pagar pela segurança. O medo também costuma errar para mais, mas esse excesso pode nos levar a más escolhas.
Há uma indústria que lucra – e muito – com essa emoção. De armas para uso pessoal a polivitamínicos, alimentar a certeza de que vamos morrer é uma fonte certa de dinheiro. Mas se decisões individuais movidas pelo medo não sempre são as melhores, escolhas governamentais podem ser catastróficas.
Guerras, carestia, morte podem advir quando as pessoas em posição de poder decidem seguir as emoções das ruas. É por isso que o momento em que um governante mais depende do apoio da população é justamente aquele em que precisa contrariar o clamor popular. Aquelas situações em que as pessoas exigem algo movidas pela emoção, mas o governo, ciente de um quadro maior, tem de ir contra essas expectativas.
Veja o caso do coronavírus. A julgar pela reação das pessoas, parecia que estávamos todos condenados a morrer em questão de dias por uma ameaça surgida no interior da China.
Pressionados por esse medo generalizado, governos do mundo inteiro se mobilizaram para enfrentar a ameaça e evitar um problema que vem se revelando menos letal do que muitas doenças com as quais convivemos todo dia. No momento em que escrevo a coluna, os dados mundiais dão conta de 75.779 casos e 2.130 mortes, uma letalidade de 2,8%.
É assustadora a perspectiva de uma epidemia? Claro que é. Mas não chega a ser uma grande ameaça à vida. E como os recursos são limitados, é dever do governo escolher prioridades racionalmente, já que cada real investido para enfrentar um problema deixa tantos outros descobertos.
Tomemos o exemplo do saneamento básico, de que pouco se fala. Como não temos medo de morrer de diarreia, governantes não atuam como deveriam nessa área, fazendo com que praticamente metade dos brasileiros não tenha acesso à coleta de esgoto. Só que mais de 7 mil pessoas morrem por ano no País de doenças ligadas a tal saneamento básico precário. O risco de um brasileiro morrer por diarreia, amebíase, shiguelose ou outra doença atrelada à falta de saneamento é milhares de vezes maior do que morrer pelo coronavírus.
Mas fezes não dão manchete, não criam pânico. Não pressionamos o governo para investir dinheiro em esgoto, cuja falta mata muito mais gente do que o coronavírus.
Por falar em esgoto, as enchentes revelam outra distorção de prioridade. Embora políticos adorem por culpa em quem não pode se defender, como São Pedro ou o clima, a verdade é que quanto mais se investe em infraestrutura, menor a ocorrência de mortes decorrentes de temporais, mesmo quando excepcionais. E eles não investem em infraestrutura, entre outras coisas, porque não temos medo de chuva.
Para ficar em só uma consequência dessa negligencia, a leptospirose, doença infecciosa associada ao contato com água e lama de enchente, atinge de 3 mil a 4 mil pessoas por ano no Brasil, com letalidade de 8,9%. E vem aumentando em vários Estados sem que a população entre em pânico a ponto de mobilizar autoridades.
Sempre haverá quem diga ser possível cuidar de tudo, desde que não se desvie tanto dinheiro para a corrupção. Mas isso não é verdade: por mais dinheiro que haja, nunca haverá recursos suficientes para abarcar todas as necessidades de todas as pessoas – até países muito ricos escolhem prioridades.
É para isso que há sistemas de governo. Congresso. Assembleias legislativas. Porque individualmente respondemos emocionalmente às situações que nos cercam, agindo nem sempre de modo mais racional. Mas quando sociedades inteiras atuam em função de emoções, há um problema bem maior. Porque emoções passam, mas as consequências ficam.
*É PSIQUIATRA
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