Morris Kachani
07 de fevereiro de 2020 | 12h25
Por Flavio Azm Rassekh e Morris Kachani
“Ser radical é uma virtude. O que é ruim é ser sectário”.
“Faço uma distinção sempre entre religioso e religiosidade. Religiosidade é uma percepção ou sentimento de reverência à vida, a ideia de que a vida não é mera materialidade que cessa, que passa. Ela tem fontes amorosas que você pode nomeá-las e até usá-la de maneira polissêmica com a palavra “deus”. Mas preciso lembrar que “deus” deve ser entre aspas, pois podem ser deusas, deuses, deus, fonte, energia”.
“É preciso ser intolerante com os intolerantes. O intolerante vem à tona quando encontra um ambiente de tolerância que o admitiu mesmo sendo intolerante no ponto de partida. Mas, no ponto de chegada o intolerante não defende mais a tolerância. E nós temos hoje isso no mundo”.
“Que criacionismo não é uma ciência é absolutamente certo, mas que criacionismo não existe, já é uma outra discussão”.
“Houve uma confusão de que quem tem religião está marcado por uma moralidade positiva e quem não tem é um perigo. Portanto, a oposição e a virulência, essa retórica furiosa, ela se dá muito mais por essa falsa identificação entre religião e boa prática de conduta e falta de religião e má prática de conduta. As duas coisas podem se mesclar de vários modos”.
(Entrevista com Mário Sérgio Cortella; abaixo, um trecho em vídeo. A transcrição completa aparece a seguir)
A religião sempre foi e sempre será, um assunto que mobiliza corações e mentes.
Como justificar a presença do mal no mundo a partir da crença em um Deus todo poderoso? Ciência e religião são de fato excludentes? E na política, como preservar um Estado laico respeitando as escolhas religiosas dos indivíduos?
A tolerância parece cada vez menos presente no cotidiano da população, e não só no Brasil. Já não se trata mais apenas de um embate entre ateus, céticos e crentes, mas também entre o protagonismo de diferentes denominações religiosas em um quadro em mutação constante.
Simpático e bonachão, o filósofo, escritor (com mais de duas dezenas de livros publicados), educador (concluiu seu doutorado na PUC-SP sob orientação de Paulo Freire), ex-monge carmelita e professor de ciências da religião, Mário Sérgio Cortella, nos recebeu em seu escritório em uma dessas tardes quentes de verão, em Higienópolis.
Proselitismo e radicalismo são temas muito presentes nos dias de hoje. Gostaríamos que discorresse um pouco a esse respeito.
Em relação à ideia de que, como um proselitista, eu serei olhado como alguém que quer convencer outros, eu não tenho nenhuma percepção negativa, desde que haja respeito.
Toda atitude proselitista, catequética, tem um limite. Eu não tenho nenhum tipo de aversão a que alguém seja proselitista, desde que o tipo de convencimento que se deseja para me atrair para aquele tipo de prática não seja invasivo, brutalizado, autoritário. Por exemplo, de maneira alguma fiz com que meus filhos e netos torcessem para o time que torço, que é o Santos. Mas tentei, isto é, fui proselitista. Só que em nenhum momento os obriguei, nem disse que por não serem, são idiotas.
A filosofia não trabalha a palavra radicalismo no sentido usual. Na percepção da filosofia, ser radical é uma virtude. O que é ruim é ser sectário. Uma pessoa radical é aquela que vai à raiz das coisas, que não é superficial. Por isso, se alguém me chamar de radical e não explicar, vou me sentir elogiado. Mas, se ela me chamar de sectário, alguém que divide, separa, afasta, exclui, que segrega, aí sim eu vou achar que é uma observação mais funda.
Por isso, se eu entender radicalismo como sendo ‘ir às raízes’, é virtuoso. Se eu entender radicalismo como na linguagem comum se entende o fundamentalismo, aí é afastador.
Na origem, o fundamentalismo nasce nos EUA, no início do século XX, dentro de algumas igrejas reformadas, com uma intenção positiva, que era a de ir até os fundamentos originais do cristianismo, de maneira que não se tivesse mais aquilo que se entendeu como uma perda secular nos séculos de prática que o cristianismo trazia.
Há uma frase clássica da igreja católica romana que aparece nos seus documentos, que é uma coisa muito perigosa: “fora da igreja católica, não há salvação”. Essa frase hoje é relativizada, inclusive por muitos dentro do mundo católico. E ela se assemelha um pouco à perspectiva de algumas formas do judaísmo, que falam do povo escolhido, limitado a 144 mil pessoas, que teriam a condução para o paraíso.
Qualquer fundamentalismo, no meu entender, degrada a noção de religião que eu acho que deva existir. Porque, todo fundamentalismo, por ser excludente, é antifraterno.
Você consegue ver um futuro aonde o sectarismo deixasse de ser tão predominante como a gente vê no mundo de hoje? Levantando a teoria do Samuel Huntington, falando sobre o choque de civilizações entre o ocidente judaico-cristão com o Islã; seria possível um futuro de unidade da religião, da diversidade?
Não. Ainda não vejo isso como um campo visível. Vejo como um desejo, uma intenção de fraternidade, mas não vejo como algo que eu possa esboçar e imaginar. Como lembram sempre os judeus, ao lado de todo paraíso tem antes um deserto a ser atravessado. E, nesse sentido, acho que por enquanto enxergo mais o deserto, e tenho esse paraíso possível de convivência como sendo um outro momento.
Nós temos um obstáculo muito sério a isso, que é o modo de organização da economia. Não tem a ver com a religião stricto sensu. O modo como a distribuição de bens, as convivências e sobrevivências estão organizados no planeta, é tão marcado por um afastamento, uma segregação, um empobrecimento das condições materiais, que em muitos lugares o fundamentalismo que segrega é muito mais uma preservação da identidade da própria sobrevivência do que de fato uma convicção religiosa.
Quando se trouxe o mundo digital à tona, até se imaginou que ele favoreceria uma disseminação daquilo que é o convívio humano sem tantas barreiras. Mas ele também permitiu que aquilo que estava abafado em muitas pessoas viesse à tona como uma força de ódio. Uma expressão odiosa, que faz com que aquele que não seja como eu seja entendido como desvalia. Portanto, ele vale menos e tem que ser colocado fora.
Às vezes eu brinco que daremos um passo pra isso fora até da religião, que será o dia em que não tivermos mais os hinos nacionais. Gosto muito de lembrar que a comunidade europeia tem como seu hino o quarto movimento da Sinfonia n°9, de Beethoven, que é um poema do Schiller sobre fraternidade, uma ode à alegria.
O que dá pra falar do cenário brasileiro em relação à religião?
O Brasil vive hoje uma modificação muito importante, que é uma reacomodação das expressões de religiosidade. Nós tínhamos até cinquenta anos atrás uma exclusividade expressiva hegemônica do cristianismo romano católico, e secundariamente outras formas de cristianismo; um modo de recusa às religiões de matriz africana, ou sincréticas, como é o caso da umbanda; uma aceitação lateral daquilo que é o kardecismo de modo francês no Brasil e uma presença islâmica e judaica muito reduzida.
De cinquenta anos pra cá, a urbanização acelerada, o desenvolvimento dos meios de comunicação muito mais intensos, a possibilidade de construção de uma democracia onde as instituições garantem mais o nosso artigo 5° e a liberdade de pensamento, fizeram com que as pessoas não se sentissem nem proibidas de serem na religião aquilo que desejam e nem obrigadas a sê-lo.
Esse era um movimento positivo há até dez anos. Isto é, nos primeiros quarentas anos desse meio século, isso caminhava para uma reacomodação em que o cristianismo católico começou a ter um número declarado de fieis mais próximo daquilo que eram de fato seus praticantes; em que as religiões de base cristã – especialmente as pentecostais e neopentecostais, encontraram um terreno de crescimento mais próximo à população, e outras formas de religiosidade passaram e ganhar um espaço público ainda não restrito. Podemos acompanhar isso de modo direto observando que nos últimos anos os hospitais passaram a ter espaços ecumênicos e não mais uma capela católica.
nos dez anos mais recentes, essas religiões passaram a disputar um mercado religioso que, no campo da economia, encontrou sua ressonância política oficial na ocupação de cargos, na estrutura do legislativo, em relação a isenção tributária.
O Brasil passou os últimos quarenta anos se reacomodando. Há hoje uma expressão muito grande das religiões neopentecostais, e elas estão vinculadas à periferia das grandes cidades nas agonias que elas vivem. Mas nos dez anos mais recentes, essas religiões passaram a disputar um mercado religioso que, no campo da economia, encontrou sua ressonância política oficial na ocupação de cargos, na estrutura do legislativo, em relação a isenção tributária.
Acho que nosso país tem que firmar-se naquilo que são as garantias constitucionais do artigo 5° para não produzir nenhum tipo de maleficação religiosa, não admitir de forma alguma que alguém seja objeto de preconceito e intolerância por conta da sua crença ou descrença.
Acho que nosso país tem que firmar-se naquilo que são as garantias constitucionais do artigo 5° para não produzir nenhum tipo de maleficação religiosa, não admitir de forma alguma que alguém seja objeto de preconceito e intolerância por conta da sua crença ou descrença. Não tenho nenhum tipo de recusa que tenhamos bancadas no nosso Congresso, isso é inerente à democracia. O que não pode é que essas bancadas – seja do que for – tenham uma autoridade que exclua as outras maneiras de ser dentro da sociedade.
Você pode comentar um pouco sobre o pentecostalismo? Consta que a religião evangélica será majoritária entre a população brasileira dentro de dez anos.
Se você olha o cristianismo original, isto é, dos três primeiros séculos, ele é em grande medida pentecostalista no termo original da expressão. Na crença cristã, o cristão que se colocava como apto a receber a visita do Espírito Santo – algo que no mundo cristão é lembrado por Pentecostes -, tinha toda uma prática religiosa marcada pela noção de que Deus nele chegava, falava e por meio dele agia. Olhando isso no campo da teologia dos três séculos originais, que alguns chamam de cristianismo primitivo, houve uma desfiguração dessa percepção inicial e ela passou a se concentrar mais nas autoridades religiosas.
A grande novidade é que o século XIX trará um pentecostalismo, principalmente no mundo norte-americano, de ruptura com a autoridade centralizada da Igreja romana. Quando uma comunidade de fazendeiros ou de vida se formava, eles fundavam ali sua pequena vila com um xerife eleito, uma professora contratada, uma igreja e um pastor.
No Brasil, o neopentecostalismo teve origem especialmente como grande massa nas favelas, nas comunidades do Rio de Janeiro. Algumas igrejas, naquele local de sofrimento e dor, são fundadas em espaços pequenos, ao contrário dos grandes templos do mundo tradicional cristão. Uma outra coisa é que parte das igrejas neopentecostais passou na sua pregação a ocupar espaços ligados à rua imediatamente; enquanto nos templos cristãos mais tradicionais exige-se um esforço pra chegar até ele – você deve caminhar até ele e sempre subir degraus; as igrejas neopentecostais ocupam lugares como um antigo cinema, uma antiga loja, a beira do ponto de ônibus. Você aguarda seu ônibus com alguém dizendo: “seus males podem ir embora. Tua dor pode partir. Venha, Jesus te ama”. Você não é amado pelo Governo, não é amado pelo seu patrão, sua família, mas Jesus te ama.
E pare de sofrer.
Pare de sofrer.
Se você junta isso ao desespero de uma vida urbana extremamente difícil, você precisa de explicações pra esse sofrimento, com uma religião que oferece a ideia de mitigar tuas dores e curar tuas feridas. O encontro se dá de maneira direta.
O cristianismo romano também fez isso em larga escala nas regiões periféricas no passado, onde a comunidade se reunia num salão paroquial. De 1960 até 2010, o Brasil mudou-se da roça pra cidade e trouxe junto a religiosidade da roça, com um pouco de superstição, o demônio revigorado, a ideia de que a reza tem uma eficácia muito forte e a música rural.
A religião urbana que essa pessoa encontrou ao chegar às grandes cidades era muito teórica, era uma discussão sobre divindade, graça, uma conversa sobre aquilo que Jesus desejaria que você pensasse. Muito normativa. E, de repente, a agonia do seu cotidiano não era contemplada. Por isso, esse neopentecostalismo encontrou um terreno fértil para progredir, e fez com que uma parte do mundo cristão reformado ou romano tivesse que se reinventar.
E tem que seguir essa reinvenção, porque você pode ter aquilo que se chama religiosidade self-service, que eu acho um perigo. É aquela pessoa que cisca: ela lê tarô, i-ching, vai ao culto católico, estuda um pouco de cabala, bebe em vários lugares. O que gera confusão e não plurarismo. E há também aquele outro que é religioso por conveniência. Várias pessoas que aderiram a práticas de religião apenas porque aquilo era conveniente a ação comercial ou política.
Gostaríamos que você falasse sobre uma questão identitária e sobre os grandes conflitos que acontecem no mundo de hoje com uma relação muito forte ao que a gente conhece como fanatismo religioso travestido de político, de defesa de nacionalismo. Você vê alguma solução a médio ou longo prazo pra isso?
Quando as democracias ocidentais, ao longo dos últimos cem anos, começaram a avançar suas perspectivas de pluralismo, de liberdade, de não constrangimento em relação ao modo como uns pensam, trouxeram dentro delas uma possibilidade de risco.
O de que essa liberdade pudesse ser utilizada para que os intolerantes mais tarde se colocassem como defensores de sua própria identidade. Pessoas que não tinham uma convicção libertária, mas acima de qualquer coisa tinham a percepção de que precisariam viver num ambiente em que fossem aceitas e tivessem condições de crescimento. Tudo isso faz com que o ambiente de defesa da tolerância admita a presença da intolerância. É preciso se intolerante com os intolerantes.
O intolerante vem à tona quando encontra um ambiente de tolerância que o admitiu mesmo sendo intolerante no ponto de partida. Mas, no ponto de chegada o intolerante não defende mais a tolerância. E nós temos hoje isso no mundo.
De uma certa maneira, o capitalismo industrial expandido foi também anulando identidades em vários lugares, e uma das coisas que ressalta a identidade de um povo é sua religiosidade. Se essa religiosidade transformada em religião alcança uma marca de massa, de larga escala, sem dúvidas servirá para dizer ‘nós somos bons porque somos muitos’. E essa ideia se contrapõe àquilo que veio antes e dizia ‘nós somos bons porque somos’.
Há hoje um confronto em relação a essas percepções em que, até quem defende – como o meu caso – a pluralidade de ideias e percepções de identidades, precisa pensar: as identidades nacionais, as teocracias que hoje circulam, elas têm o direito de sê-lo. Mas é um direito sem requisito? Isto é, qual o limite que carrega a minha noção de pluralidade? É plural a minha aceitação de qualquer ação por ela ser de outra pessoa e eu ter que assim vê-la? É a distinção entre compreender e aceitar. Antes de aceitar ou recusar, preciso compreender.
Mas, há coisas que eu recuso; por exemplo, não é porque eu tenho a ideia de pensamento plural e identidade local que eu entenda que a mutilação clitoriana, na África, pode ser feita, pois é uma agressão à vida independentemente de sua origem. A ideia do trabalho escravo não é pra mim uma questão local, que se decidirá porque aquilo faz parte daquela cultura. O estupro, como é em algumas comunidades parte da cultura local, pode ser uma representação daquela identidade, mas é inaceitável quando eu olho o humano acima dessa condição. Por isso, não é um relativismo em que vale qualquer coisa. Vale aquilo que promova a proteção da vida humana e em geral. Aquilo que ameaça e agrida tem que ser objeto de recusa ou pelo menos de discussão.
Como justificar a presença do mal no mundo a partir da crença em um Deus todo poderoso?
Essa é a questão mais funda que a filosofia ocidental tem, e quem trouxe a melhor solução pra ela foi um africano chamado Agostinho. No século quinto ele constrói uma teologia em que – além da separação entre o Estado e a Igreja, o sagrado e o profano -, discutirá a questão central da origem do mal. Afinal, se você pensa numa fonte de vida como uma fonte de bondade que tudo gerou e tudo sabe, por que o mal gerou e por que, sabendo que ele seria gerado, o fez?
Esse tipo de impasse lógico Agostinho resolverá de um modo brilhante. Ele diz: o mal não existe como uma entidade, isto é, ele não é fruto da criação. Ele é a privação do bem, a ausência do bem. Portanto, ele não tem entidade por si mesmo, é a carência do bem.
É tão forte essa visão de Agostinho de que o mal é a privação do bem, e que essa privação não se dá por escolha da fonte divina, mas do indivíduo, que ele vai criar as bases para aquilo que, mais tarde, Lutero – que era um monge agostiniano, quando da ruptura com o mundo romano na igreja cristã – vai tratar como livre arbítrio. O que a igreja luterana fará é trazer essa questão do mal como uma escolha a partir de uma liberdade que se tem.
No campo das outras religiões, a fonte da ideia de maldade dentro do judaísmo também é escolha. Os primeiros humanos foram alertados do que não deveriam fazer e fizeram porque quiseram. Essa é uma grande distinção da ética e teologia judaico-cristã, adotada em parte pelo islamismo
O mundo greco-romano trabalha com a percepção de que a vida é tragédia, isto é, que não há escolhas que você faça livremente porque os deuses, por conta e risco, gostam de rir bastante e por isso nos torturam. Daí que, na concepção greco-romana o mal é uma entidade.
Essa visão trágica será afastada pelo judaísmo e pelo cristianismo mais adiante. A visão cristã e judaica é dramática, não trágica. Quando Satã, o inimigo, se instala, ele nasce a partir de um anjo decaído; que decaiu porque quis. Essa noção de escolha é muito marcante em várias concepções religiosas.
Marcelo Gleiser diz que ciência e religião não são inimigas. Você concorda?
Sim. Acho que elas são complementares. A grande questão da História humana é por que existe alguma coisa que não o nada, isto é, por que as coisas existem, por que eu existo e deixo de existir, o que estou fazendo aqui, existe alguma razão? Esse tipo de agonia, de uma ausência de origem para as razões das coisas, essa percepção agônica é respondida em quatro campos de esforços: a ciência, a arte, a filosofia e a religião.
Eu sempre brinco, ciência é ver para crer, enquanto religião é crer para ver.
Elas são áreas complementares e não excludentes. Claro que ciência e religião não são a mesma coisa. Eu sempre brinco, ciência é ver para crer, enquanto religião é crer para ver. Em nenhum momento a gente diria que a ciência é ateia; uma boa ciência é cética. Se ela trabalha com a percepção experimental, com empirismo, especialmente da contemporaneidade, ela dirá que Deus não é impossível, mas sim improvável. Se eu não posso prová-lo, não posso afirmar sua existência.
De maneira geral há muitos pontos de contato, e você cita o Gleiser, entre a cosmologia contemporânea da física quântica e aquilo que é o modo da teologia clássica em relação à origem do cosmos. Nesse sentido, ciência e religião não são, de maneira alguma, adversárias inconciliáveis; elas têm trajetórias diferentes nessa mesma questão.
Esta ideia não é a noção de um relativismo expressivo, isto é, vale qualquer coisa. Alguém que adira apenas aos preceitos da ciência falhará em relação a sua hiper dimensionalidade humana. A arte ultrapassa isso, assim como a filosofia. A filosofia pergunta sobre os por ques, e a ciência pergunta sobre os comos. Eu não pergunto como se morre, mas por que se morre. A arte nem pergunta, ela explode respostas, independentemente de a pergunta existir ou não. São situações distintas, não excludentes.
Falando um pouco sobre os profetas do ateísmo. Christopher Hitchens foi um deles, Richard Dawkins é outro, e eles afirmam que a religião não lida com a realidade como ela é, que ela cria realidades paralelas e não deixa espaço para o agnóstico explorar. Como você vê o sucesso desses ditos profetas do ateísmo?
É hoje um território muito forte para que as pessoas tomem noção de autoria da própria vida. O mundo digital facilitou isso imensamente. Eu sou autor da foto, autor do texto, autor do prato, autor da ideia. Essa noção de autoria levará também a que se balanceie um pouco o que significa o domínio de algumas forças que são superiores ou anteriores a nós, existindo ou não, sobre nós. A religião também entra naquilo que Rubem Alves chamava de exílio do sagrado. O século XX dando força àquilo que é o cientificismo do século XIX, especialmente o positivismo, vai trazer à tona a ideia de um sagrado que é exilado. Isto é, se esse é sinônimo de razão, a razão é sinônimo de liberdade. Religião é sinônimo de des-razão, e, portanto, de ignorância e prisão da mente.
Era óbvio se ter uma religião, e é inclusive um valor negocial. Numa cidade pequena – e o Brasil as tinha em larga quantidade até cinquenta anos atrás – não ser da religião majoritária significava não fazer negócios, não ter relações, não participar da vida da comunidade. À medida que vamos transferindo a nossa população nesse meio século mais recente para os grandes centros urbanos, essa transferência me oferece algum anonimato e a possibilidade das pessoas não saberem se sou frequentador, ou não, de alguma religião.
Agora, não mais. Com o mundo digital não há mais o anonimato. Quando estou atravessando a rua, as pessoas vez ou outra pegam o celular e se preparam para tirar uma foto. Ela querem verificar se estou atravessando na faixa ou não. Porque, como eu falo sobre ética em palestras e livros, lhes ocorre: “vamos ver se esse professor é coerente”.
Hoje, a perspectiva de eu poder ter uma religião como escolha e de não tê-la como escolha é muita mais viável. Não é o avanço da ciência que faz isso, porque o avanço da ciência e da tecnologia trouxe muito mais perguntas do que respostas. Nossa capacidade de olhar com nossos telescópios ultra avançados e perceber que nada sabemos, e que pode haver uma discussão sobre se há uma origem inteligente…
Que criacionismo não é uma ciência é absolutamente certo, mas que criacionismo não existe, já é uma outra discussão. Nós não temos patamares onde você finca e diz: “não, até aqui vai a racionalidade, a expressividade da mente; e a partir daí, não mais”.
Eu não deixo de ler aqueles que são agnósticos ou ateus, porque as convicções que carregam nos auxiliam, seja a apoiar ideias que tenho, seja a recusá-las.
O ponto é a virulência, tanto de um lado quanto de outro.
É porque houve uma confusão de que quem tem religião está marcado por uma moralidade positiva e quem não tem é um perigo. Portanto, a oposição e a virulência, essa retórica furiosa, ela se dá muito mais por essa falsa identificação entre religião e boa prática de conduta e falta de religião e má prática de conduta. As duas coisas podem se mesclar de vários modos.
Você é religioso?
Eu não tenho mais uma prática de religião, no sentido de frequentar uma igreja, cultos. Às vezes me perguntam, por conta da minha origem, se sou católico. Eu costumo dizer que tenho formação católica, uma tradição católica, uma simpatia católica, mas seria ofensivo aos católicos dizer que eu sou um católico. Para eu sê-lo, teria que sê-lo de modo autêntico e inteiro, teria que frequentar a igreja, os cultos, os sacramentos, e eu não o faço.
Agora, se eu tenho religiosidade? Sem dúvida.
Faço uma distinção sempre entre religioso e religiosidade. Religiosidade é uma percepção ou sentimento de reverência à vida, a ideia de que a vida não é mera materialidade que cessa, que passa. Ela tem fontes amorosas que você pode nomeá-las e até usá-la de maneira polissêmica com a palavra “deus”. Mas preciso lembra que “deus” deve ser entre aspas, pois podem ser deusas, deuses, deus, fonte, energia. Há uma polissemia que eu não considero incorreta em relação a um conceito que a vida não é mera banalidade que se esgota.
Isso significa que eu já tive religião. Fui católico, fui monge carmelita descalço, durante três anos vivi num convento. Depois eu saí para a vida docente na universidade, que era o que eu tinha como intenção. Eu tenho religiosidade, mas não tenho uma religião stricto sensu, no sentido de formalização da religiosidade.
A frase ‘eu sou um católico não praticante’, acho um pouco agressiva. Se não é praticante, não é católico.
A gente é aquilo que pratica.
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