segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Thiago Amparo O dia em que o MBL cancelou Mandela, FSP

Nos 30 anos do fim de sua prisão, líder sul-africano nos ensina que o diálogo requer igualdade

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Era 11 de maio de 1994, África do Sul. Mandela acorda em sua primeira manhã como presidente do país que o aprisionou por 27 anos.
Ao chegar ao prédio presidencial, o líder estranhou não ter sentido cheiro de café. Às 10 horas da manhã, os assessores do regime do apartheid estavam prontos para deixarem seus cargos.
Mandela entrou na sala, cumprimentou cada um dos presentes com um aperto de mão e deixou bem claro que não exoneraria a equipe anterior. 
Esse é um dos muitos relatos que Mandela nos conta no livro "A Cor da Liberdade: Os anos de presidência".
Vivemos em tempos estridentes, penso. Neles, atos magnânimos do cotidiano, como esse, passam despercebidos por uns e são santificados por outros. Ambos estão errados.
 
Nelson Mandela, ao lado de Winnie, ao deixar a prisão em 11 de fevereiro de 1990
Nelson Mandela, ao lado de Winnie, ao deixar a prisão em 11 de fevereiro de 1990 - Allen Tannenbaurn - 05.dez.2013/Zumapress/Xinhua
Há 30 anos, no dia 11 de fevereiro de 1990, Mandela saía da prisão. Na semana passada, o Movimento Brasil Livre (MBL) aproveitou a ocasião para chamar o ex-presidente de "terrorista", o que o movimento já fizera em vídeo há um ano.
Imagino que seja difícil para jovens milennials lidar com nuances, mas a trajetória de Mandela talvez lhes ensine isso. 
Partido de Mandela, o ANC (Congresso Nacional Africano) somente começou a flertar com a luta armada na década de 1960, após o massacre de Sharpeville no qual 50 manifestantes foram metralhados.
Eles se opunham à lei do apartheid que obrigava negros a portar o tempo todo uma espécie de passaporte que permitia que eles andassem nas áreas exclusivas para brancos.
Tanto o ANC em 1996 diante da Comissão da Verdade e Reconciliação quanto o próprio Mandela em sua biografia "Longo Caminho para a Liberdade" narram em detalhes essa luta.
O Mandela presidente, no entanto, nos ensinou a força do diálogo. Em carta da prisão em julho de 1970, escreve: "Podemos ser francos e autênticos sem ser afoitos ou ofensivos, podemos ser educados sem ser subservientes, podemos atacar o racismo e seus males sem nutrir em nós mesmos sentimentos de hostilidade entre diferentes grupos raciais." 
A força moral dessa frase, de quem estava há 2.177 dias no cárcere, se dissolve no ar para MBL e cia., que fazem da falta de diálogo e do desrespeito sua tática política.
Na cultura do cancelamento, duas coisas se confundem. De um lado, raiva é mal compreendida como vitimização. "Minha resposta para o racismo é raiva", escreveu certa vez Audre Lorde.
Raiva é a expressão de quem está acostumado a ser silenciado, e comedimento é o privilégio de quem sabe que será escutado porque sempre o foi. 
De outro lado, estamos mais preocupados em estarmos certos do que em escutar e perdoar. Oferecer perdão, no entanto, sem que esse seja acompanhado de mudanças estruturais por parte de quem tem o poder para fazê-las é como atirar pérola aos porcos.
Trinta anos depois da saída de Mandela da prisão, a África do Sul continua complexa. Políticas liberalizantes impedem desmantelar a desigualdade abismal.
Cortes emitem decisões belíssimas com base na Constituição sul-africana (uma obra de arte), as quais, muitas vezes, restam não implementadas.
Líderes estudantis do movimento Rhodes Must Fall questionam o significado real da democracia hoje no país para a população negra. O antigo presidente sul-africano Jacob Zuma teve sua prisão decretada no início de fevereiro por corrupção. 
Nesse cenário, o que nos acalenta são as palavras do prisioneiro Mandela: "Se as calamidades tivessem o peso de objetos físicos, nós teríamos sido esmagados há muito tempo. No entanto, todo o meu corpo pulsa de vida e está cheio de esperança".
Thiago Amparo
Advogado, é professor de políticas de diversidade na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos humanos e discriminação.

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