Cineasta repete ladainha do fã-clube do papa Francisco ao dizer que ele salvou muita gente
O cineasta Fernando Meirelles, diretor de “Dois Papas”, cometeu um erro no programa Roda Viva do último dia 3. Na verdade, dois.
Ao responder ao repórter especial da Folha Ivan Finotti, que o confrontou com comentários publicados neste jornal, um de Elio Gaspari, sobre Bento 16, e outro meu, sobre Francisco, o diretor afirmou que o desta colunista estava errado.
Porém, me confundiu com Gaspari. Mas esse é o menor dos problemas.
O que importa aqui é que Meirelles repetiu a ladainha equivocada que o fã-clube do papa propaga: a de que Jorge Bergoglio, na ditadura militar (1976-1983), salvou muita gente.
Só que, quando questionados sobre quem foi salvo, os apoiadores de Francisco não conseguem dar mais do que uma dúzia de nomes. E, mesmo assim, a maioria dos casos mencionados ocorreu antes da ditadura.
O conceito de “salvo” que usam também é elástico. Ao analisar os casos, estão entre eles caronas dentro do país, telefonemas para avisar fulano de que estava sendo seguido, dicas sobre como se comportar.
Há, sim, casos de perseguidos que ele escondeu no Colégio Máximo de São Miguel. Mas se trata de um grupo pequeno —e antes dos anos de chumbo.
Há, sim, casos de perseguidos que ele escondeu no Colégio Máximo de São Miguel. Mas se trata de um grupo pequeno —e antes dos anos de chumbo.
Num país como a Argentina, em que a investigação histórica é tendenciosa e escassa, é fácil encontrar quem opine com assertividade, mas sem evidências.
Parece-me que Meirelles caiu nessa arapuca. O cineasta diz que conversou com ex-alunos e amigos de Bergoglio e com um “consultor jesuíta”.
Ou seja, ouviu apenas um lado da história, já que também admitiu que fez o filme convencido de antemão de que Bergoglio era “o cara”, alguém de quem é fã.
Há dois livros que tentam embasar a tese fantasiosa. “A Lista de Bergoglio”, de Nello Scavo, que evoca uma comparação com a “A Lista de Schindler”.
Só que Oskar Schindler salvou 1.200 judeus, e no livro de Scavo aparecem apenas 11 pessoas ajudadas por Bergoglio.
Já “Salvados por Francisco”, de Aldo Duzdevich, traz as mesmas histórias e a defesa da ideia de que não se deve cobrar Bergoglio por não ter feito mais pelos perseguidos sem entender que ele atuava “segundo um contexto”.
Não é um crime o fato de ele não ter ajudado mais gente. Mas é leviano afirmar que salvou muitos quando não é verdade.
Houve religiosos que se arriscaram muito mais que ele, como os bispos Miguel Hesayne e Enrique Angelelli, que denunciaram desaparecimentos e confrontaram os militares. Angelelli foi morto pelo regime.
Bergoglio não fez quase nada nem mesmo para ajudar sua amiga Esther de Careaga.
Bergoglio não fez quase nada nem mesmo para ajudar sua amiga Esther de Careaga.
Em depoimento à Justiça, em 2010, Bergoglio foi questionado sobre que tipo de atitude teve quando soube que Esther tinha sido sequestrada.
Respondeu que tinha entrado em contato só com “pessoas ligadas aos direitos humanos”, mas não com autoridades —a quem ele conhecia.
Na mesma ação em que Esther desapareceu, foram sequestradas duas freiras francesas, e os representantes deste país foram até a sede da Marinha reclamar por elas.
Torço para que o sucesso do filme, que concorre a três estatuetas na cerimônia do Oscar, que acontece neste domingo (9), suscite debates mais bem informados sobre o período e sobre o personagem.
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