Conceito usado sem rigor, crentefobia não distingue evangélicos de seus líderes
Quando conceitos, de maneira acrítica, são lançados ao ar como uma granada, o que nos resta fazer é recolher seus cacos para deles extrair algum sentido. Crentefobia essencializa quem diz entender: trata crentes como um todo sem partes, e define fobia tão amplamente que a priva de significado.
Tese 1. Intolerância religiosa existe, mas combatê-la requer desmascarar dinâmicas de poder.
Fobia é uma palavra escrita a sangue. Sangue dos presentes em um terreiro de umbanda na última segunda (3) em Ribeirão Preto, em São Paulo. Trinta pessoas invadiram o terreiro, jogaram uma bomba caseira e quebraram os dentes de um dos presentes. Sangue das 253 pessoas mortas no Sri Lanka nos ataques a bomba contra igrejas cristãs e hotéis durante a Páscoa ano passado. Sangue dos cristãos perseguidos na Arábia Saudita, país cujo líder Bolsonaro disse em outubro ter “certa afinidade”.
Intolerância religiosa existe e não é de hoje. Quando experiências religiosas, como a de Damares ao pé de goiabeira, são ridicularizadas, pratica-se intolerância religiosa. Lei de crimes de preconceito a pune com o mesmo rigor com que pune racismo e, agora, LGBTfobia. A cada 15 horas um novo caso de intolerância religiosa é denunciado no disque 100, segundo dados entre 2015 e 2017 do Ministério de Direitos Humanos: 39% deles contra religiões de matriz africana, católica (17%) e evangélica (14%).
Uma coisa é condenar (corretamente) atos de intolerância contra evangélicos, inclusive entre progressistas não evangélicos, outra coisa é argumentar que há um sistema de opressão estrutural contra evangélicos. O conceito de crentefobia, ao fazer o segundo dizendo que está fazendo o primeiro, chega a ser ingênuo, politicamente, e impreciso, conceitualmente. Fatores como discriminação e violência históricas, dificuldade de chamar a atenção das elites políticas, e falta de representatividade compõem a ideia de fobia do tipo do racismo religioso sofrido por religiões de matriz africana. Sustento que o preconceito que possa haver contra evangélicos de carne e osso, não os líderes televisionados, à direita e à esquerda, é mais resquício de uma sociedade classista e racista que se entende na missão de civilizar o outro do que em si pela religião.
Tese 2: Tratar evangélicos como bloco uníssimo incorre no mesmo preconceito que tenta combater.
Evangélicos são diversos. Equalizar evangélicos com conservadorismo é o mesmo que equalizar milhões de pessoas a alguns de seus líderes. Pastor e ex-deputado estadual, Carlos Bezerra Jr. defende no excelente livro “Fé Cidadã” de 2018 que “o olhar generalista nivela sempre pelo campo hegemônico”. Evangélicos não podem ser reduzidos à Frente Parlamentar Evangélica, formalizada somente em 2005, ou ao bolsonarismo.
Fazê-lo é não entender evangélicos além de alguns de seus líderes estridentes. Líderes esses que já flertaram, inclusive, com lulismo como descreve Gilberto Nascimento em “O Reino” sobre a Universal. Pesquisadoras do Instituto de Estudos da Religião – ISER, Christina Cunha e Ana Carolina Evangelista mostram que pertencimento religioso institucionalizado (por exemplo ser radialista ou apresentador de TV) pesa na balança para eleger evangélicos, e que a agenda moral –embora ajude a ganhar eleições– não se sustenta sem um ganho real para a vida das pessoas evangélicas. Até quando bolsonarismo poderá prometer este ganho real em meio a políticas de austeridade? Entender estas nuances torna simplista equalizar conservadorismo com evangélicos.
Quem conhece o trabalho de evangélicos negros antirracistas, como Ronilso Pacheco (autor de “Teologia Negra” de 2019), Juliana Maia (Universidade Federal Fluminense) e Jackson Augusto (@afrocrente), tem mais cuidado em opor progressistas brasileiros a negros evangélicos, e presta mais atenção às desigualdades raciais de poder dentro das igrejas. Quem conhece a história de evangélicos em causas progressistas –descritas no livro “Progressive Evangelicals and the Pursuit of Social Justice” por Brantley W. Gasaway– sabe contextualizar melhor as nuances nos movimentos evangélicos hoje para além dos Silas Malafaias e Edir Macedos.
Crentefobia, como conceito, essencializa evangélicos, tratando-os como um bloco uníssono e colado aos seus líderes. A quem interessa fazê-lo senão ao campo hegemônico de líderes evangélicos a despeito das nuances e, eu diria, dos próprios interesses do seu público?
Tese 3. Sem diferenciar ameaças à liberdade religiosa de um lado, e críticas ao uso do poder político para impor visões religiosas, de outro, debate se empobrece.
Não se questiona se evangélicos deveriam estar em posições de poder: existindo numa sociedade democrática, devem estar e estão, inclusive para defender sua liberdade religiosa. Questão, diferente, no entanto é fazer uso do poder político para impor visões religiosas a quem delas não coaduna. Ao fazê-lo, retórica da crentefobia se reverte: promove a intolerância religiosa que queria combater.
Um exemplo é a crítica à política contra gravidez precoce veiculada pelos ministérios de direitos humanos e saúde na última semana. Não se critica a política por ser inspirada na religião, mas por ser nociva aos adolescentes que compartilham da visão religiosa de abstinência. A campanha nada traz de informação sobre saúde, apenas imagens de adolescentes felizes e sem filhos. Não se trata de uma campanha ABC, que combine abstinência e contracepção porque lhe sobra fundamento moral, e lhe falta informação sobre saúde.
Em Mateus 13, há a metáfora do joio e do trigo. “O reino dos céus é semelhante ao homem que semeia boa semente no seu campo; mas, dormindo os homens, veio o seu inimigo, e semeou o joio no meio do trigo, e retirou-se.” Na hora de semear, “deixai crescer ambos juntos até à ceifa; e, por ocasião da ceifa, direi aos ceifeiros: colhei primeiro o joio e atai-o em molhos para o queimar; mas o trigo, ajuntai-o no meu celeiro.” Anuncia-se o momento em que evangélicos reivindicarão o trigo em meio ao joio que seus líderes plantaram ao vender religião à política.
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