domingo, 9 de fevereiro de 2020

Família carbonizada em São Bernardo vivia ascensão econômica, OESP

Felipe Resk, O Estado de S.Paulo
09 de fevereiro de 2020 | 06h00


Às 2h32 de terça-feira, 28 de janeiro, o sinal da radiopatrulha interrompeu o plantão até então sossegado do 6.º Batalhão da Polícia Militar. Um incêndio aparentemente em um carro de luxo acabara de ser controlado pelo Corpo de Bombeiros em um recôndito da Estrada do Montanhão, periferia de São Bernardo do Campo, no ABC paulista. O chamado para viaturas era urgente. Pelo que diziam, havia cadáveres escondidos no porta-malas.
A ocorrência deixou os policiais em ronda intrigados. A delegacia daquela região registrou menos de um homicídio por mês no ano passado: não deveria ser um caso comum. Pelas coordenadas do local, viram que correspondia à uma área de terra batida e cascalho, quase sem luminosidade, e toda ladeada por matagais.
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Vera Lúcia Conceição, mãe de Flaviana: "Sempre que eu via um caso na TV, pedia a Deus para consolar a família. Agora me vejo nessa" Foto: FELIPE RAU/AE
Quando a viatura chegou, os agentes se depararam com a imagem: os corpos, carbonizados, estavam colados uns aos outros. Foi preciso analisar com cautela para confirmar que eram três mortos. “Dois aparentavam ser do sexo masculino, não sendo possível precisar”, registrou-se no boletim de ocorrência. Do outro cadáver nem sequer dava para arriscar o sexo.
Por causa do estrago provocado pelas chamas, a perícia não conseguiu coletar impressões digitais na lataria destruída. Só um pedacinho escapou do fogo, justamente onde fica a placa traseira. A sequência DWQ-7944 era a única pista em mãos. 
Após consultas no sistema, descobriram se tratar de um Jeep Compass, ano 2019, de cor azul. O proprietário era o empresário Romuyuki Veras Gonçalves, de 43 anos, que vivia no condomínio Morada Verde, em Santo André, a 6,5 quilômetros dali. Como de praxe, policiais se deslocaram até a casa e logo perceberam que não havia mais ninguém para responder ao som da campainha – a não ser as cadelinhas July e Belinha.
Levou menos de 24 horas para a polícia confirmar Romuyuki entre os corpos no porta-malas. Também identificaram a mulher dele, Flaviana Gonçalves, de 40 anos, e o filho caçula Juan Victor, de 15. Chamou a atenção da polícia que, apesar de a casa estar trancada e sem sinais de arrombamento, os cômodos se encontravam revirados e faltava uma TV, videogame, uma caixinha de moedas antigas, joias e cerca de R$ 8 mil.
A tragédia da família causou ainda mais comoção quando, no dia seguinte, os investigadores prenderam os primeiros envolvidos no crime: a filha mais velha do casal, Anaflávia Gonçalves, de 24 anos, e a mulher dela, Carina Ramos, de 26. Em depoimento logo após o caso, elas alegaram inocência e apontaram um agiota, para quem supostamente a família estaria devendo, como possível mandante.
Duas semanas depois, Anaflávia e Carina mudaram a versão e confessaram ter tramado roubar R$ 85 mil para depois repartir o valor com comparsas – mas sob condição de não haver violência física ou xingamentos durante o assalto. “A coisa saiu do controle”, diz a advogada de defesa Isabel Cristina Rotta. Até agora, elas negam participação nos assassinatos.

Caso de família.

Em dezembro, a avó Vera Lúcia Conceição, de 57 anos, estava feliz. Os exames mais recentes não indicavam nenhum avanço do câncer de mama, contra o qual faz tratamento há dez anos. Às vésperas da festa de Natal, aguardava ansiosa para receber a filha Flaviana e a família na sua casa em Extrema, cidade da região sul de Minas.
Tomou um susto quando viu o carrão que parou na frente do portão. “Cadê o pretinho?”, Vera perguntou, se referindo ao veículo antigo da família. Descrita como extrovertida, Flaviana apontou o Jeep Compass, modelo que não sai a menos de R$ 99 mil da concessionária, e respondeu: “Mãe, a gente queria fazer uma surpresa!”. No momento, a avó também não deixaria de notar que a neta Anaflávia não participava da viagem de fim de ano.
O carro zero quilômetro era um sinal da prosperidade da família de raízes humildes. O casal se conheceu ainda na infância, quando os dois eram vizinhos em Cidades Tiradentes, bairro pobre da zona leste da capital. Com cerca de 10 anos, Romuyuki já ajudava o pai a bater de porta em porta, tentando vender produtos de limpeza que eles mesmos fabricavam. “Foi o primeiro namorado da minha filha”, conta Vera.
O primeiro emprego formal de Romuyuki foi como office-boy. Depois, formou-se em Administração e trabalhou por 23 anos em uma multinacional. Entrou auxiliar administrativo e saiu representante internacional. Em 2016, lançou o livro de autoajuda Adaptações às Mudanças em Tempos Acelerados. Por sua vez, Flaviana era formada em Enfermagem. 
Há menos de dois anos, o casal resolveu investir em um negócio próprio e abriu, em um shopping de São Bernardo, a primeira loja de perfumes. Instalado na entrada da praça de alimentação, o quiosque era alvo de reclamações de lanchonetes vizinhas (segundo funcionários, o cheiro dos produtos se misturava ao das comidas), mas todos por lá afirmam que as vendas, em si, iam muito bem.
Em questão de meses, inauguraram uma filial em Mauá e preparavam a terceira em Extrema. Sem ter concluído o curso de Engenharia, a filha mais velha passou a trabalhar, de carteira registrada, nas lojas dos pais. Ao fim do dia, via a mãe contabilizar o dinheiro dos negócios.
Já Juan Victor era estudante e tinha o sonho de virar astronauta – a diferença para a irmã mais velha é de uma década. Curiosamente, quando Flaviana estava na gestação do caçula, Vera também esperava uma menina temporã. “Fiquei grávida junto com a minha filha”, comenta a avó.

Juntos.

 Parentes dizem que os quatro eram muito unidos e costumavam compartilhar das mesmas programações. A família gostava de ir à praia, mesmo na época em que precisavam acampar em barraca. Apesar da distância de idades, Anaflávia e Juan Victor também eram próximos e curtiam até jogar videogame juntos.
“Era uma família bem tradicional: o pai sério e a mãe brincalhona”, afirma o primo Diogo Reis. “Tudo que eles conseguiram foi com muito trabalho.”
O comportamento de Anaflávia teria mudado após ela conhecer Carina, por meio de uma rede social, em meados de 2018, segundo relatam os parentes. Na época, a filha mais velha era casada com outra mulher.
O primeiro casamento aconteceu em 2017 e Romuyuki e Flaviana foram padrinhos da cerimônia. Artesã, Vera lembra que Anaflávia decidiu casar “de uma hora para outra”, por isso a avó teve de correr para arranjar o vestido e confeccionar o buquê. A família sempre cita o episódio como evidência de que o casal lidava bem com o fato de Anaflávia ser homossexual. Também “de uma hora para outra”, ela teria rompido a relação e pedido para a ex sair de casa.
Descrita como ciumenta e possessiva, Carina já havia terminado outros dois relacionamentos estáveis antes de se envolver com Anaflávia. No primeiro casamento, com um homem, teve duas filhas biológicas. No outro, com uma mulher, adotou outra menina.
Ela e Anaflávia passaram a morar juntas no Jardim Santo André, uma comunidade perto da casa da família, e se casaram em 9 de janeiro, pouco antes do crime. Parentes relatam não terem sido chamados e dizem que só ficaram sabendo da união mais tarde. 
“Com o passar do tempo, Anaflávia passou a se distanciar cada vez mais da família”, diz Reis. De acordo com parentes, Carina exerceria uma espécie de “domínio” sobre a mulher e acabou sendo proibida de frequentar a casa após conflitos com Romuyuki. O episódio central aconteceu após o pai presentear Anaflávia com um Fiat Palio. Em seguida, a filha teria sido obrigada por Carina a passar o carro para o nome dela.
A advogada Isabel Cristina Rotta afirma que as duas protagonizavam “brigas normais de casal” e que não haveria grandes conflitos entre o casal e a família de Anaflávia – exceto “um pouco de aversão” de Romuyuki que tomava partido da filha durante essas desavenças. “Ela frequentava a casa, saía com eles. Estavam sempre perto”, diz.

O crime.

Ainda de acordo com a advogada, a ideia do suposto assalto teria surgido porque todos os envolvidos estariam passando por “dificuldades financeiras”. O plano começou a ser traçado ainda no ano passado.
Para a Polícia Civil, outras três pessoas – incluindo dois primos de Carina – participaram dos homicídios. Além do casal, também estão presos Juliano de Oliveira Ramos Júnior (um dos primos) e Guilherme Ramos da Silva, um amigo delas. O outro parente, Jonathan Fagundes Ramos, está foragido.
Naquela noite, a quadrilha usou o Fiat Palio para entrar no condomínio. Uma vez na casa, rendeu Romuyuki e Juan Victor – inicialmente, ela e Carina ainda simulavam serem vítimas do assalto. Flaviana só chegaria mais tarde e também acabou rendida.
Armados com pistola glock, os criminosos teriam amarrado pai e filho com fitas adesivas. Depois passaram a bater neles e a sufocá-los com um saco plástico, enquanto exigiam a senha do cofre. Com medo, o jovem chegou a urinar nas calças.
“Naquela euforia toda de não saber a senha, eles passaram a agredir os dois e a coisa saiu do controle”, diz Isabel. “Anaflávia começou a chorar e aí ameaçaram matar as duas, se não colaborassem. Eles tomaram conta da situação.”
Após descobrir que não havia a quantia de R$ 85 mil, os comparsas teriam decidido executar a família, segundo afirma a defesa do casal. Elas não saberiam dizer como os assassinatos aconteceram, diz Isabel.
“Anaflávia está abaladíssima. Ela falou que, se soubesse que alguma coisa fosse dar errado, não teria feito. Nunca pensou que iria perder a família por causa disso”, diz a advogada. Já Carina estaria arrependida e com “sentimento de culpa”. “Elas não imaginaram esse final.”
Já a versão de Juliano é diferente. À polícia, ele diz que as duas participaram ativamente da ação e deram aval para as mortes. Anaflávia teria concordado por causa de uma suposta herança de um seguro de vida feito pelos pais.
Agora, os investigadores trabalham para confirmar o papel específico de cada um. Com o processo sob segredo de Justiça, um policial comentou em anonimato: “Muitos ficam dizendo que Carina que é a cabeça. Pode até ser. Mas, honestamente, eu não sei ainda. O que é certo é que eu não chamaria nenhum dos cinco para tomar um cafezinho na minha casa”.
No dia seguinte ao crime, os muros do condomínio amanheceram pichados com a palavra “Justiça”. “Queremos respostas”, havia em outra inscrição.
Também foi nessa ocasião que a avó Vera chegou a entrar, de fato, no imóvel. Lá, percebeu os objetos espalhados pelo chão, o cofre escancarado e marcas de sangue no quarto de Juan Victor. Desde então retorna – dia sim, dia não – para alimentar as cachorrinhas, mas não passa da área externa.
“Sempre que eu via um caso na TV, pedia a Deus para consolar a família. Agora me vejo nessa situação... Se eu chorar é porque a dor é grande demais, mas estou forte. Tenho Deus. Não quero a pena de ninguém, só peço que rezem”, diz a avó.
Para ela, o crime tem motivo. “A ganância subiu à cabeça, infelizmente”, afirma Vera. “Perdoar (a neta), já perdoei, mas eu quero Justiça. Eu vou até o final, tenho de saber toda a verdade. Preciso disso."

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